sábado, 24 de maio de 2008

O naufrágio do centro do mundo: entre a recessão e o colapso


Jorge Beinstein

A recessão instalou-se nos Estados Unidos, os subsídios aos alimentos, que cobriam cerca de 26,5 milhões de pessoas em 2006, aumentaram em 2007 para 28 milhões, nível nunca alcançado desde os anos 1960. Recentemente, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revisou para baixo suas previsões de crescimento para a economia norte-americana, prevendo uma expansão igual a zero para o primeiro semestre deste ano. De seu lado, o FMI acaba de fazer um prognóstico ainda mais grave, incluindo períodos de crescimento negativo. Estes organismos vinham bombardeando os meios de comunicação (que por sua vez bombardeavam o planeta) com prognósticos otimistas baseados na suposta força da economia norte-americana; afirmavam que não haveria recessão e que o pior que poderia acontecer seria um baixo crescimento, rapidamente superado por uma nova expansão... Se agora admitem a recessão é porque alguma coisa muito pior está no horizonte.Sob a aparência de várias crises convergentes abre-se diante dos nossos olhos o final do que deveríamos ver como o primeiro capítulo do declínio do Império norte-americano (aproximadamente 2001-2007) e o começo de um processo turbulento disparado pelo salto qualitativo de tendências negativas que foram se desenvolvendo ao longo de períodos de diversa duração. De qualquer maneira, as más notícias financeiras, energéticas e militares não parecem aplacar os delírios messiânicos de Washington; pelo contrário, é como se Bush e seus falcões não fossem deixar a Casa Branca dentro de poucos meses. Continuam ameaçando governos que não se submetem aos seus caprichos, insinuam novas guerras e afirmam querer prolongar indefinidamente as ocupações do Iraque e do Afeganistão. Mesmo um ataque devastador contra o Irã ainda é possível. A cada certo tempo emerge uma nova onda de rumores bélicos apontando para o Irã, geralmente originados em declarações ou transcendidos de altos funcionários do governo.Um ataque contra esse país teria conseqüências imediatas e catastróficas para a economia mundial: o preço do petróleo iria às nuvens, o sistema financeiro global ficaria em uma situação caótica e a recessão imperial se transformaria em uma ultra-recessão encabeçada por um dólar em queda livre. Talvez alguns estrategistas do Pentágono e do círculo de falcões mais radicais estejam imaginando um grande fogo mundial purificador, do qual emergiria vitoriosa a nação escolhida por Deus: os Estados Unidos da América. Trata-se de uma loucura, mas faz parte da configuração psicológica de uma parcela importante da elite dominante, atravessada por uma corrente letal que combina virtualidade, onipotência, desespero e fúria diante de uma realidade cada dia menos dócil. Nos grandes centros de decisão econômica, atualmente, domina a incerteza, que vai se transformando em pânico; o fantasma do colapso começa a mostrar sua face. Enquanto isso, autoridades econômicas norte-americanas injetam massivamente liquidez no mercado, concedem subsídios fiscais e improvisam caríssimas operações de socorro para as instituições financeiras falidas, tentando suavizar a recessão e sabendo que assim aceleram a inflação e a queda do dólar: sua margem de manobra é muito pequena, a mistura de inflação e recessão torna completamente ineficazes seus instrumentos de intervenção. A palavra "colapso" foi aparecendo com crescente intensidade desde o final do ano passado em entrevistas e artigos jornalísticos, muitas vezes combinada com outras expressões não menos terríveis, em alguns casos, até adotando sua forma mais popular (desmoronamento, morte, queda catastrófica) e, em outros, sua forma rigorosa, ou seja, como sucessão irreversível de graves deteriorações sistêmicas, como decadência geral. Paul Craig Roberts (que no passado foi membro do staff diretivo do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e editor do Wall Street Journal) publicou em 20 de março um texto cujo título era “O colapso da potência americana” no qual descreve os traços decisivos do declínio integral dos Estados Unidos (1); em 27 de março, The Economist intitulava “Esperando o Armagedon” um artigo sobre a maré irresistível de falências empresariais norte-americanas. Em 14 de março, The Intelligencer mancheteava: “Especialistas internacionais prognosticam o colapso da economia norte-americana”, no qual recolhia as opiniões, entre outros, de Bernard Connelly, do Banco AIG, e de Martin Wolf, colunista do Financial Times. Em 3 de abril, Peter Morici, em uma nota publicada em Counterpunch, apontava que “é impossível negar que a economia (norte-americana) entrou em uma recessão cuja profundidade e duração são imprevisíveis” (2). A título de conclusão, em 14 de abril, o Financial Times publicava um artigo de Richard Haass, presidente do Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, onde afirmava que “a era unipolar, período sem precedentes de dominação norte-americana, terminou. Durou umas duas décadas, pouco mais do que um instante em termos históricos” (3). Uma degradação prolongadaPara entender o que está acontecendo, assim como seus possíveis desenvolvimentos futuros, é necessário considerar fenômenos que modelaram o comportamento da sociedade norte-americana durante as últimas três décadas, gerando um processo mais amplo de decadência social. Em primeiro lugar, a deterioração da cultura produtiva, que foi gradualmente preterida por uma combinação de consumismo e práticas financeiras. A precarização laboral, incentivada a partir da presidência de Reagan, buscava diminuir a pressão salarial melhorando, assim, a rentabilidade capitalista e a competitividade internacional da indústria, mas a longo prazo degradou a coesão laboral e o interesse dos assalariados pelas estruturas de produção. Isso derivou em uma crescente ineficácia dos processos de inovação, que passaram a ser cada vez mais difíceis e caros em comparação com os principais competidores globais (europeus, japoneses, etc.). Um dos resultados disto foi o déficit crônico e ascendente do comércio exterior (2 bilhões de dólares em 1971, 28 bilhões em 1981, 77 bilhões em 1991, 430 bilhões em 2001, 815 bilhões em 2007). Enquanto isso, a massa de negócios financeiros foi-se expandindo e absorvendo capitais que não encontravam espaços favoráveis no tecido industrial e em outras atividades produtivas. As empresas e o Estado requeriam esses fundos, as primeiras para desenvolverem-se, concentrar-se, competir em um mundo cada vez mais duro, e o segundo para financiar seus gastos militares e civis, que cumpriam um papel muito importante na manutenção da demanda interna.Vamos lembrar, por exemplo, as despesas descomunais motivadas pela chamada "Iniciativa de Defesa Estratégica" (mais conhecida como "Guerra das Estrelas"), lançada por Reagan em 1983, no momento em que o desemprego atingia 10% da População Economicamente Ativa (a porcentagem mais alta desde o fim da Segunda Guerra Mundial). Um segundo fenômeno foi a concentração de renda: no início dos anos 1980 o 1% mais rico da população absorvia entre 7% e 8% da Renda Nacional. Vinte anos depois, esse número havia duplicado e em 2007 rondava 20%: o mais alto nível de concentração desde o final dos anos 1920. Por sua vez, o 10 % mas rico passou de absorver um terço da Renda Nacional, a meados dos anos 1950, para os quase 50% de hoje (4). Contrariamente ao que ensina a “teoria econômica”, essa concentração não derivou em maiores poupanças e investimentos industriais, senão em mais consumo e mais negócios improdutivos, que com ajuda da explosão das tecnologias da informação e da comunicação geraram um universo semi-virtual acima do mundo, quase mágico, onde fantasia e realidade misturam-se caoticamente. Por ele navegaram (e ainda navegam) milhões de norte-americanos, especialmente das classes superiores. Junto com isso, irrompeu um processo —no início quase imperceptível, mas depois esmagador— de desintegração social, um de cujos aspectos mais notáveis é o aumento da criminalidade e da subcultura da transgressão, abrangendo os mais variados setores da população, acompanhadas pela criminalização de pobres, marginais e minorias étnicas. Atualmente, as prisões norte-americanos são as mais populosas do planeta: por volta de 1980 eram uns 500 mil presos, em 1990 em torno de 1.150.000, em 1997 eram 1.700.000 —aos que havia que acrescentar outros 3.900.000 em liberdade vigiada —, mas no final de 2006 os presos já somavam uns 2.260.000 e os cidadãos em liberdade vigiada eram 5 milhões; no total, mais de 7.200.000 norte-americanos estavam sob custódia judicial (5). Em abril de 2008, um artigo publicado no The New York Times dizia que os Estados Unidos, com menos de 5% da população mundial, têm 25% de todos os presos do planeta: um em cada cem de seus habitantes adultos estão presos; é o número mais alto a nível internacional (6). Militarização e decadência estatalOutro fenômeno que é preciso considerar é a longa marcha ascendente do Complexo Industrial Militar, área de convergência entre o Estado, a indústria e a ciência que foi se expandindo a partir de meados dos anos 1930, atravessando governos democratas e republicanos, guerras reais ou imaginárias, períodos de calma global ou de alta tensão. Alguns autores, entre eles Chalmers Johnson, consideram que os gastos militares têm sido o centro dinâmico da economia norte-americana, da Segunda Guerra Mundial até as guerras euro-asiáticas da administração Bush-Cheney, passando pela Coréia, Vietnã, Guerra das Estrelas e Kosovo. Segundo Johnson, que define a estratégia sobredeterminante seguida nas últimas sete décadas como "keynesianismo militar", o gasto bélico real do ano fiscal 2008 vai superar 1,1 trilhões de dólares, o mais alto desde a Segunda Guerra Mundial (7). Estes gastos foram crescendo ao longo do tempo, envolvendo milhares de empresas e milhões de pessoas; de acordo com os cálculos de Rodrigue Tremblay, no ano 2006 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos empregava 2.143.000 pessoas, enquanto os contratistas privados do sistema de defesa empregavam 3.600.000 trabalhadores (um total de 5.743.000 postos de trabalho) aos que é preciso acrescentar uns 25 milhões de veteranos de guerra. Em resumo, nos Estados Unidos em torno de 30 milhões de pessoas (número equivalente a 20% da População Economicamente Ativa) recebem de maneira direta e indireta recursos provenientes do gasto público militar (8).O efeito multiplicador do setor sobre o conjunto da economia possibilitou no passado a prosperidade de um esquema que Scott MacDonald qualifica como "the guns and butter economy", ou seja, uma estrutura em que o consumo de massas e a indústria bélica expandiam-se ao mesmo tempo (9). Mas esse longo ciclo esta chegando ao fim; a magnitude alcançada pelos gastos bélicos transformou-os em um fator decisivo do déficit fiscal, causando inflação e desvalorização internacional do dólar. Além disso, sua hipertrofia deu um enorme peso político às elites estatais (civis e militares) e empresariais, que foram embarcando em um autismo sem contrapesos sociais. A crescente sofisticação tecnológica, paralelamente ao encarecimento dos sistemas de armas, afastou cada vez mais a ciência militarizada das suas eventuais aplicações civis, afetando negativamente a competitividade industrial. Esta separação ascendente entre a ciência militar (devoradora de fundos e de talentos) e a indústria civil chegou a níveis catastróficos no período terminal da ex-União Soviética. Agora, a história parece estar se repetindo. A tudo isto soma-se um acontecimento aparentemente inesperado: as guerras do Iraque e do Afeganistão —e, de maneira indireta, o fracasso da ofensiva israelense no Líbano— mostram a ineficácia operativa do super complexo (e super caro) maquinário bélico de última geração, posto em xeque por inimigos que operam de maneira descentralizada e com armas simples e baratas, provocando uma grave crise de percepção (uma catástrofe psicológica) entre os dirigentes do Complexo Industrial Militar dos Estados Unidos e da OTAN (na história das civilizações, esta não é a primeira vez que ocorre um fenômeno deste tipo). Contudo, a crise da hipertrofia da militarização está estreitamente associada à decadência do Estado, evidenciada pelo recuo da sua capacidade integradora (declínio da segurança social, predominância da cultura elitista em seus centros de decisão, etc.), pela degradação da infra-estrutura e por um déficit fiscal crônico e em aumento, que derivou em uma dívida pública gigantesca. Se olharmos para as últimas quatro décadas, os superávits fiscais constituem uma raridade; desde os anos 1970 os déficits foram crescendo até chegar, ao início dos anos 1990, a níveis muito altos. Contudo, Clinton despediu-se, no final dessa década, com alguns superávits que, observados a partir de um enfoque de longo prazo, aparecem como fatos efêmeros. Mas desde a chegada de George W. Bush o déficit voltou, atingindo números sem precedentes: 160 bilhões de dólares em 2002, 380 bilhões em 2003, 320 bilhões em 2005... Estamos agora diante de um estado imperial cheio de dívidas, cujo funcionamento não mais depende apenas do sistema financeiro nacional, mas também (cada vez mais) do financiamento internacional. Teria sido extremamente difícil para a Casa Branca lançar-se em sua aventura militar asiática sem as compras dos seus títulos pela China, Japão, Alemanha e outras fontes externas. A dependência energéticaA tudo o que já foi dito é necessário acrescentar a dependência petroleira. Por volta de 1960, os Estados Unidos importavam 16% do seu consumo; atualmente, a importação chega a 65%. Durante muito tempo puderam importar a preços baixos, mas agora a situação mudou, a produção mundial de petróleo está se aproximando de seu nível máximo (dentro de muito pouco tempo vai começar a cair) o que, combinado com o enfraquecimento do dólar, esta levando o preço a níveis nunca antes alcançados. E a substituição parcial de combustível de origem fóssil por biocombustíveis (no qual também estão empenhada outras grandes potências industriais) reduz a disponibilidade relativa global de terras agrícolas para a produção de alimentos, o que provoca um aumento geral dos preços dos produtos da agricultura, o que, por sua vez, amplifica o efeito inflacionário. Os Estados Unidos emergiram como um grande país industrial porque desde o início do século XX foram, também, a primeira potência petroleira internacional. Igual que a Inglaterra durante o século XIX em relação ao carvão, tiveram uma vantagem energética que lhes permitiu desenvolver tecnologias baseadas nesse privilégio e competir com sucesso com o resto do mundo. Mas, em meados dos anos 1950, prestigiosos especialistas norte-americanos, como o geólogo King Hubbert, anunciaram o fim próximo da era de abundância energética nacional. Segundo Hubbert antecipou (em 1956) a partir do início dos anos 1970 a produção petroleira dos Estados Unidos começaria a declinar: foi o que ocorreu. A incapacidade dos Estados Unidos para reconverter seu sistema energético (tiveram quase quatro décadas para fazer isso) reduzindo ou pondo freio à sua dependência do petróleo pode ser atribuída, em primeiro lugar, à pressão das companhias petroleiras que impuseram a opção da exploração intensiva de recursos externos, periféricos, que foram sobrestimados. Poderia afirmar-se, neste caso, que a dinâmica imperialista forjou uma armadilha energética da qual agora o próprio Império é vítima. O Estado não desenvolveu estratégias de longo prazo tendentes a economizar energia, algo que provavelmente teria desacelerado (não evitado) a crise energética atual, não só devido às pressões do lobby petroleiro, mas também porque suas cúpulas políticas (democratas e republicanas) foram mergulhando na cultura de curto prazo correspondente à era da hegemonia financeira, subordinando-se completamente aos interesses imediatos dos grupos econômicos dominantes. Mas também deveríamos refletir sobre os limites do sistema tecnológico ocidental-moderno, que os norte-americanos exacerbaram ao extremo. A mesma coisa ocorreu em torno de objetos técnicos decisivos da cultura individualista (por exemplo, o automóvel) que definem o estilo de vida dominante e com os procedimentos produtivos baseados na exploração intensiva de recursos naturais não renováveis ou na destruição dos ciclos de reprodução dos recursos renováveis. Graças a essa lógica destrutiva, o capitalismo industrial pôde, na Europa, a partir do final do século XVIII, independizar-se dos ritmos naturais, submetendo brutalmente a natureza e acelerando sua expansão.Isso aparecia aos admiradores do progresso dos séculos XIX e XX como a grande proeza da civilização burguesa. Uma visão mais ampla permite, agora, perceber que se tratava do desdobramento de uma de suas irracionalidades fundamentais, que os Estados Unidos, o capitalismo mais bem-sucedido da história, levou ao mais alto nível jamais alcançado. Desequilíbrios, dívidas, queda do dólarA perda de dinamismo do sistema produtivo foi compensada pela expansão do consumo privado (concentrado nas classes altas), pelos gastos militares e pela proliferação de atividades parasitárias lideradas pelo sistema financeiro, provocando crescentes desequilíbrios fiscais e no comércio exterior e uma acumulação incessante de dívidas públicas e privadas, internas e externas. A dívida pública norte-americana passou de 390 bilhões de dólares em 1970 para 930 bilhões em 1980, 3,2 trilhões em 1990, 5,6 trilhões em 2000 para chegar aos 9,5 trilhões em abril de 2008; por sua vez, a dívida total dos norte-americanos (pública mais privada) rondava, na última data mencionada, os 53 trilhões de dólares (aproximadamente o equivalente ao Produto Bruto Mundial) dessa quantia, 20% (uns 10 trilhões de dólares) constituem dívida externa. Apenas durante 2007, a dívida total aumentou em torno de 4,3 trilhões de dólares (equivalente a 30% do Produto Interno Bruto norte-americano) (10).O processo foi coroado por uma sucessão de bolhas especulativas que marcaram, a partir dos anos 1990, um sistema que consumia muito além das suas possibilidades produtivas.A partir dos anos 1970-1980 é possível observar o crescimento paralelo de tendências perversas, como os déficits comercial, fiscal e energético, os gastos militares, o número de presos e as dívidas públicas e privadas. Todas essas curvas ascendentes aparecem atravessadas por algumas tendências descendentes; por exemplo, a redução da taxa de poupança pessoal e a queda do valor internacional do dólar (que se acelerou nesta década), expressão do declínio da supremacia imperial. A articulação destes fenômenos permite-nos delinear uma totalidade social decadente à qual se incorporam (convergem) uma grande diversidade de fatos de diversa magnitude (culturais, tecnológicos, sociais, políticos, militares, etc.). Esta visão de longo prazo coloca a era dos falcões presidida por George. W. Bush como uma espécie de “salto qualitativo” de um processo com várias décadas de desenvolvimento e não como um fato-excepcional ou um desvio-negativo. Estaríamos diante da fase mais recente da degradação do capitalismo estatista-keynesiano, iniciada nos anos 1970, pontapé inicial da crise geral do sistema. A experiência histórica ensina que essas arrancadas rumo ao inferno quase sempre estréiam no meio de euforias triunfalistas, nas quais por trás de cada sinal de vitória está oculta uma constatação de desastre. A louca corrida militar sobre Europa e Ásia estava (ainda está) no centro do discurso sobre o suposto combate vitorioso contra um inimigo (terrorista) global imaginário, que afundou no pântano as forças armadas imperiais, das expansões desenfreadas da bolha imobiliária e das dívidas que estavam ocultas pelos números de aumento do Produto Interno Bruto e a sensação (midiática) de prosperidade. O centro do mundoOs Estados Unidos constituem hoje o centro do mundo (do capitalismo global). O seu declínio não é apenas o da primeira potência, mas o do espaço essencial da interpenetração produtiva, comercial e financeira em escala planetária, que foi acelerando nas três últimas décadas até formar uma trama muito densa, da qual nenhuma economia capitalista desenvolvida ou subdesenvolvida pode escapar (sair dessa densa rede significa romper com a lógica, com o funcionamento concreto do capitalismo composto por classes dominantes locais altamente transnacionalizadas).Durante esta década, a expansão econômica na Europa, China e outros países subdesenvolvidos e o modesto (efêmero) fim do estancamento japonês costumavam ser mostrados como o restabelecimento de capitalismos maduros e a ascensão de jovens capitalismos periféricos, quando, na verdade, tratou-se de prosperidades estreitamente relacionadas com a expansão consumista-financeira norte-americana. Os Estados Unidos representam 25% do Produto Bruto Mundial e esse país é o primeiro importador global: em 2007 comprou bens e serviços por 2,3 trilhões de dólares, é o principal cliente da China, Índia, Japão e Inglaterra, e é o primeiro mercado extra-europeu da Alemanha. Mas ,é sobretudo, no plano financeiro, área hegemônica do sistema internacional, onde destaca sua primazia. Por exemplo, a rede dos negócios com produtos financeiros derivados (mais de 600 trilhões de dólares registrados pelo Banco da Basiléia, ou seja, umas 12 vezes o Produto Bruto Mundial) articula-se a partir da estrutura financeira norte-americana, as grandes bolhas especulativas imperiais irradiam para o resto do mundo de maneira direta ou gerando bolhas paralelas, como foi possível comprovar com a experiência recente da especulação imobiliária nos Estados Unidos e seus clones diretos na Espanha, Inglaterra, Irlanda ou Austrália e indiretos, como a superbolha bursátil chinesa. Se observarmos o comportamento econômico das grandes potências vamos comprovar em cada caso como suas esferas de negócios superam sempre os limites dos respectivos mercados nacionais e, inclusive, regionais, cuja dimensão real é insuficiente do ponto de vista do volume e da articulação internacional das suas atividades. A União Européia está solidamente atada aos Estados Unidos a nível comercial, industrial e, principalmente, financeiro; o Japão acrescenta a isso sua histórica dependência das compras norte-americanas; por sua vez, a China desenvolveu sua economia no último quarto de século sobre a base de suas exportações industriais para os Estados Unidos e países como Japão, Coréia do Sul e outros, fortemente dependentes do Império. Finalmente, o renascimento russo gira em torno de suas exportações energéticas (principalmente dirigidas para a Europa), sua elite econômica foi estruturando-se desde o fim da URSS multiplicando suas operações em escala transnacional, especialmente seus vínculos financeiros com a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Não se trata de simples laços diretos com o Império, mas da reprodução ampliada e acelerada de uma complexa rede global de negócios, mercados interdependentes, associações financeiras, inovações tecnológicas, etc., que integra o conjunto das burguesias dominantes do planeta. O mundo financeiro hipertrofiado é seu espaço de circulação natural e seu motor geográfico são os Estados Unidos, cuja decadência não pode ser dissociada do fenômeno mais amplo da chamada globalização, ou seja, a financeirização da economia mundial. Poderíamos visualizar o Império como sujeito central do processo, seu grande beneficiário e manipulador e, ao mesmo tempo, como seu objeto, produto de uma corrente que o levou até o mais alto nível de riqueza e degradação. Graças à globalização, os Estados Unidos puderam consumir em excesso, pagando ao resto do mundo com seus dólares desvalorizados e impondo seu entesouramento (na forma de reservas) e seus títulos públicos, que financiaram seus déficits fiscais. Contudo, foi também graças ao parasitismo norte-americano que europeus, chineses, japoneses, etc., puderam colocar no mercado imperial uma porção significativa das suas exportações de mercadorias e de excedentes de capitais.Nesse sentido, o parasitismo financeiro, produto da crise de sobreprodução crônica, é, ao mesmo tempo, norte-americano e universal; a outra cara do consumismo imperial é a reprodução de capitalismos centrais e periféricos que precisam ultrapassar seus mercados locais para fazer crescer seus benefícios. Isso é evidente nos casos da Europa Ocidental e do Japão, mas também no da China, que exporta graças aos seus baixos salários (comprimindo seu mercado interno). O que está afundando agora não é a nave principal da frota (se assim fosse, numerosas embarcações poderiam salvar-se); há somente uma nave e é seu setor decisivo que está fazendo água.Horizontes turbulentos e ilusões conservadorasDevemos colocar em seu contexto histórico as atuais intervenções dos Estados dos países centrais destinadas a contrabalançar a crise. Nos últimos meses, proliferaram ilusões conservadoras referentes ao possível descolamento de várias economias industriais e subdesenvolvidas da recessão imperial, mas os fatos vão derrubando essas esperanças. Junto com elas apareceu a fantasia do renascimento do intervencionismo keynesiano: segundo essa hipótese, o neoliberalismo (entendido como simples desestatização da economia) seria um fenômeno reversível e novamente, como há um século, o Estado salvaria o capitalismo.Na verdade, nas últimas quatro décadas ocorreu nos países centrais um fenômeno duplo: por um lado, a degradação geral dos Estados que, mantendo seu tamanho com relação a cada economia nacional, ficaram submetidos aos grupos financeiros, perderam legitimidade social. Por outro lado, foram progressivamente ultrapassados pelo sistema econômico mundial, não só pela sua rede financeira, mas também por operações industriais e comerciais que burlavam os controles (cada vez mais frouxos) das instituições nacionais e regionais.Nos Estados Unidos, esse processo avançou mais do que em nenhum outro país desenvolvido, nunca foi abandonado o histórico keynesianismo militar: pelo contrário, o Complexo Militar-Industrial hipertrofiou-se, articulando-se com um conjunto de negócios mafiosos, financeiros, energéticos, etc., que se transformou no centro dominante do sistema de poder, apropriando-se grosseiramente do aparato estatal até transformá-lo em uma estrutura decadente. Nos países centrais, o estado intervencionista (de raiz keynesiana) não precisa retornar, porque nunca foi embora. Ao longo das últimas décadas, obediente às necessidades das áreas mais avançadas do capitalismo, foi modificando suas estratégias, reforçando a concentração de renda e os desenvolvimentos parasitários, modificando sua ideologia, seu discurso (ontem integrador, social, produtivista-industrial; hoje elitista, neoliberal e virtualista-financeiro).E no mundo subdesenvolvido, onde o estatismo regrediu até ser triturado, em muitos casos, pela onda depredadora imperialista, a desestatização foi sua forma concreta de submissão à dinâmica do capitalismo global. Lá, o retorno ao Estado interventor-desenvolvimentista de outras épocas é uma viajem no tempo fisicamente impossível: as burguesias dominantes locais, seus negócios decisivos, estão completamente transnacionalizados ou sob a tutela direta de empresas transnacionais. Agora, em plena crise, ficam a descoberto os dois problemas sem solução aos olhos do Estado desenvolvido (imperialista): sua degeneração estrutural e sua insuficiência, sua impotência perante um mundo capitalista grande e complexo demais. É o que aponta Richard Haas no artigo citado acima, embora sem dizer que não se trata de uma reconversão positiva sobredeterminante do capitalismo internacional o que está encurralando o Estado norte-americano e os outros estados centrais, mas um fenômeno mundial negativo que de maneira rigorosa deveríamos definir como decadência global (econômica-institucional-política-militar-tecnológica).É por isso que o paralelo que agora está na moda em certos círculos de especialistas entre a implosão soviética e a provável futura implosão dos Estados Unidos é totalmente insuficiente, porque existe, entre outras coisas, uma diferença de magnitude decisiva, o hiper-gigantismo do Império faz com que seu naufrágio tenha um poder de arrastamento sem precedentes na história humana. Mas também porque os Estados Unidos não constituem “um mundo à parte” (marginalizado), mas são o centro da cultura universal (o capitalismo), a etapa mais recente de uma longa história mundial ao redor do Ocidente.A imensidão do desastre em curso, o extremo radicalismo das rupturas que pode vir a gerar, muito superiores às causadas pela crise iniciada em 1914 (que provocou o nascimento de um longo ciclo de tentativas de superação do capitalismo e, também, do fascismo, tentativa de recomposição bárbara do sistema burguês) gera reações espontâneas de negação da realidade nas elites dominantes, nos espaços sociais conservadores e para além deles. Mas a realidade da crise está se impondo. Todo o edifício de idéias, de certezas de diversos matizes, construído ao longo de mais de dois séculos de capitalismo industrial, está começando a apresentar rachaduras.


* Economista argentino, professor na Universidade de Buenos Aires. É autor, entre outros livros, de "Capitalismo senil, a grande crise da economia global".

A nova geopolítica da energia


Os estrategistas militares norte-americanos estão se preparando para as futuras guerras que certamente serão empreendidas, não por questões de ideologia ou política, mas em luta por recursos crescentemente escassos. Estima-se que, juntos, os Estados Unidos e a China chegarão a consumir 35% das reservas mundiais de petróleo em 2025.

Michael T. Klare - The Nation


Os estrategistas militares norte-americanos estão se preparando para as futuras guerras que certamente serão empreendidas, não por questões de ideologia ou política, mas em luta por recursos crescentemente escassos.Enquanto a atenção diária do exército norte-americano está concentrada no Iraque e Afeganistão, os estrategistas norte-americanos olham para além destes dois conflitos com o objetivo de prever o meio em que irá ocorrer o combate global em tempos vindouros. E o mundo que eles enxergam é um no qual a luta pelos recursos vitais — mais do que a ideologia ou a política de equilíbrio de poder — domina o campo da guerra. Acreditando que os EUA devem reconfigurar suas doutrinas e forças para prevalecer em semelhante entorno, os oficiais mais veteranos deram os passos necessários para melhorar seu planejamento estratégico e capacidade de combate. Apesar de que muito pouco disto tudo chegou ao domínio público, há um bom número de indicadores-chave.A partir de 2006, o Departamento de Defesa, em seu relatório anual “Capacidade Militar da República Popular da China”, coloca no mesmo nível a competição pelos recursos e o conflito em torno de Taiwan como a faísca que poderia desencadear uma guerra com a China. A preparação de um conflito com Taiwan permanece como “uma razão importante” na modernização militar chinesa, segundo indica a edição de 2008, mas “uma análise das aquisições recentes do exército chinês e do seu pensamento estratégico atual sugere que Pequim também está desenvolvendo outras capacidades do seu exército, para outro tipo de contingências, como, por exemplo, o controle sobre os recursos.” O relatório considera, inclusive, que os chineses estão planejando melhorar sua capacidade para “projetar seu poder” nas zonas que em obtêm matérias-primas, especialmente combustíveis fósseis, e que esses esforços podem supor uma significativa ameaça para os interesses da segurança norte-americana.O Pentágono também está solicitando, neste ano, fundos para o estabelecimento do Africa Command (Africom), o primeiro centro de mando unificado transatlântico desde que, em 1983, o presidente Reagan criou o Central Command (Centcom) para proteger o petróleo do Golfo Pérsico. A nova organização vai concentrar seus esforços, supostamente, na ajuda humanitária e na “guerra contra o terrorismo”. Mas em uma apresentação na Universidade Nacional de Defesa, o segundo comandante do Africom, o Vice-Almirante Robert Moeller, declarou que “a África tem uma importância geoestratégica cada vez maior” para os EUA — o petróleo é um fator-chave — e que entre os desafios fundamentais para os interesses estratégicos norte-americanos na região está a “crescente influência na África” por parte da China.A Rússia também é contemplada através da lente da competição mundial pelos recursos. Apesar de que a Rússia, diferentemente dos EUA e da China, não precisa importar petróleo nem gás natural para satisfazer suas necessidades nacionais, esse país quer dominar o transporte de energia, especialmente para a Europa, o que tem causado alarme nos oficiais veteranos da Casa Branca, que receiam uma restauração do status da Rússia como superpotência e temem que o maior controle desse país sobre a distribuição de petróleo e gás na Europa e na Ásia possa enfraquecer a influência norte-americana na região.Em resposta à ofensiva energética russa, a administração Bush está empreendendo contramedidas. “Tenho a intenção de nomear... um coordenador especial de energia, que dedicará especialmente todo o seu tempo à região da Ásia Central e do mar Cáspio”, informou, em fevereiro, a Secretária de Estado Condoleezza Rice ao Comitê de Assuntos Exteriores do Senado. “É uma parte verdadeiramente importante da diplomacia.” Um dos principais trabalhos deste coordenador, segundo declarou Rice, será o de promover a construção de oleodutos e gasodutos que cincunvalem a Rússia, com o objetivo de diminuir o controle desse país sobre o fluxo energético regional.Tomados em conjunto estes e outros movimentos semelhantes sugerem que houve um deslocamento da política: em um momento em que as reservas mundiais de petróleo, gás natural, urânio e minérios industriais chave —como o cobre e o cobalto— começam a diminuir e a demanda por esses mesmos recursos está disparando, as maiores potências mundiais desesperam-se por conseguir o controle sobre o que resta das reservas ainda sem explorar. Estes esforços geralmente envolvem uma intensa guerra de lances nos mercados internacionais, o que explica os preços recordes que estão alcançando todos estes produtos, mas também adotam uma forma militar, quando começam a ser feitas transferências de armamento e são organizadas missões e bases transatlânticas. Para reafirmar a vantagem dos EUA —e para contrabalançar movimentos similares da China e outros competidores pelos recursos— o Pentágono situou a competição pelos recursos no próprio centro do seu planejamento estratégico.Alfred Thayer Mahan, revisitadoNão é a primeira vez que os estrategistas norte-americanos dão máxima prioridade à luta global pelos recursos. No final do século XIX, um atrevido grupo de pensadores militares liderados pelo historiador naval e presidente do Naval War College, Alfred Thayer Mahan, e seu protégé, o então Secretário Assistente da Marinha, Theodore Roosevelt, fizeram uma campanha exigindo uma Marinha norte-americana forte e a aquisição de colônias que garantissem o acesso aos mercados de ultramar e às matérias-primas. Seus pontos de vista ajudaram pontualmente a aumentar o apoio da opinião pública à Guerra Hispano-Americana e, após sua conclusão, ao estabelecimento de um império comercial norte-americano no Caribe e no Pacífico.Durante a Guerra Fria, a ideologia governou completamente a estratégia norte-americana de contenção da URSS e de derrota do comunismo. Mas mesmo nesse momento não foram totalmente abandonadas as considerações em torno dos recursos. A doutrina Eisenhower, de 1957, e a doutrina Carter, de 1980, apesar de acomodarem-se à habitual retórica anti-soviética da época, pretendiam sobretudo assegurar o acesso dos EUA às prolíficas reservas de petróleo do Golfo Pérsico. E quando o presidente Carter estabeleceu, em 1980, o núcleo do que mais tarde seria o Centcom, sua principal preocupação era a proteção do fluxo de petróleo proveniente do Golfo Pérsico, e não a contenção das fronteiras da União Soviética.Após o fim da Guerra Fria, o presidente Bush tentou —e não conseguiu— estabelecer uma coalizão mundial de estados com ideologias afins (uma “Nova Ordem Mundial”), que deveria manter a estabilidade mundial e permitir aos interesses empresariais (com as companhias norte-americanas à frente) estender seu alcance por todo o planeta. Este enfoque, embora suavizado, foi adotado depois por Bill Clinton. Mas o ocorrido em 11-9 e a implacável campanha contra os “estados canalhas” (principalmente contra o Iraque de Saddam Hussein e o Irã) da atual administração Bush recolocaram o elemento ideológico no planejamento estratégico norte-americano. De acordo com o que foi apresentado por George W. Bush, a “guerra contra o terrorismo” e os “estados canalha” são os equivalentes contemporâneos das anteriores lutas ideológicas contra o fascismo e o comunismo. Examinando mais de perto estes conflitos, contudo, é impossível separar o problema do terrorismo no Oriente Médio, ou o desafio do Iraque e do Irã, da história da extração de petróleo naquelas regiões por parte de empresas ocidentais.O extremismo islâmico, do tipo propagado por Osama Bin Laden e Al Qaeda na região, tem muitas raízes, mas uma das mais importantes afirma que o ataque ocidental e a ocupação de terras islâmicas —e a resultante profanação das culturas e povos muçulmanos— é produto da sede de petróleo dos ocidentais. “Lembrem também que a razão mais importante que os nossos inimigos têm para controlar nossas terras é a de roubar nosso petróleo”, disse Bin Laden para seus simpatizantes em uma gravação sonora datada em dezembro de 2004. “Ou seja, que devem fazer o que estiver em suas mãos para deter o maior roubo de petróleo da história."De modo similar, os conflitos dos EUA com o Iraque e Irã foram modelados pelo princípio fundamental da doutrina Carter, que diz que os EUA não permitirão que surja uma potência hostil que possa conseguir, em um momento dado, o controle do fluxo de petróleo no Golfo Pérsico, e com isso, em palavras do vice-presidente Cheney, “ser capaz de ditar o futuro da política energética mundial.” O fato de que estes países possivelmente estão desenvolvendo armas de destruição massiva somente complica a tarefa de neutralizar a ameaça que representam, mas não altera a lógica estratégica subjacente no fundo dos planos de Washington.A preocupação sobre a segurança do fornecimento de recursos tem sido, então, uma característica central no planejamento estratégico há bastante tempo. Mas a atenção que agora se presta a essa questão representa uma mudança qualitativa no pensamento norte-americano, igualável apenas aos impulsos imperiais que levaram à Guerra Hispano-Americana um século atrás. Contudo, nesta ocasião o movimento está motivado não por uma fé otimista na capacidade norte-americana de dominar a economia mundial, mas por uma perspectiva francamente pessimista sobre a disponibilidade dos recursos vitais no futuro e pela intensa competição por eles, da qual participam a China e outros motores econômicos emergentes. Enfrentando este duplo desafio, os estrategistas do Pentágono acreditam que assegurar a primazia norte-americana na luta pelos recursos mundiais deve ser a prioridade número um da política militar norte-americana.Volta ao futuroAlinhada com este novo enfoque, a ênfase está colocada agora no papel mundial que deve desempenhar a Marinha norte-americana. Utilizando uma linguagem que teria sido surpreendentemente familiar para Alfred Mahan e o primeiro presidente Roosevelt, a Marinha, os marines e a guarda costeira revelaram em outubro um documento intitulado “Uma estratégia cooperativa para o poder naval no século XXI”, no qual se destaca a necessidade dos EUA de dominar os oceanos e garantir para si as principais rotas marítimas que conectam o país com seus mercados de ultramar e com as reservas de recursos.Nas quatro décadas passadas, o comércio marítimo mundial quadruplicou: 90% do comércio mundial e dois terços do petróleo são transportados por mar. As rotas marítimas e a infra-estrutura costeira que as apóiam são a tábua de salvação da atual economia global. Expectativas de crescimento cada vez maiores e o aumento da competição pelos recursos, junto com a escassez, podem servir como motivação para que as nações façam cada vez mais reclamações de soberania sobre parcelas cada vez maiores do oceano, das vias fluviais e dos recursos naturais, e de tudo isso podem resultar potenciais conflitos.Para enfrentar este perigo, o Departamento de Defesa empreendeu uma modernização total da sua frota de combate, o que inclui o desenvolvimento e obtenção de novos porta-aviões, destróieres, cruzadores, submarinos e um novo tipo de nave de “combate litorâneo” (armamento costeiro), um esforço que levará décadas completar e que consumirá centenas de milhares de milhões de dólares. Alguns dos elementos deste plano foram revelados pelo presidente Bush e pelo Secretário de Defesa Gates na proposta de orçamento para o ano fiscal 2009, apresentada no passado mês de fevereiro. Entre os artigos mais caros do orçamento destacam os seguintes:- 4,2 bilhões de dólares para a principal embarcação de uma nova geração de porta-aviões com propulsão nuclear.- 3,2 bilhões de dólares para um terceiro míssil para o destróier classe "Zumwalt". Estas embarcações de guerra com camuflagem avançada irão servir também como plataforma de teste para um novo tipo de mísseis cruzeiro, os CG(X).- 1,3 bilhões de dólares para as duas primeiras embarcações de combate litorâneo.- 3,6 bilhões de dólares para um novo submarino classe Virgínia, a embarcação de combate subaquático mais avançada do mundo, atualmente em produção.Os programas de construção naval propostos terão um custo de 16,9 bilhões no ano fiscal de 2009, depois dos 24,6 bilhões de dólares votados para o ano fiscal 2007-2008.O novo enfoque estratégico da Marinha reflete-se não só na obtenção de novas embarcações, mas também no posicionamento dos que já existem. Até pouco tempo atrás, a maioria dos ativos navais estavam concentrados no Atlântico Norte, no Mediterrâneo e no Pacífico Noroeste, em missões de apoio às forças da OTAN norte-americanas e em virtude dos pactos de defesa com a Coréia do Sul e o Japão. Estes vínculos aparecem de maneira muito destacada nos cálculos estratégicos, mas aumenta cada vez mais a importância da proteção dos enlaces comerciais vitais no Golfo Pérsico, no sudeste do Pacífico e no Golfo da Guiné (próximo aos maiores produtores de petróleo da África). Em 2003, por exemplo, o chefe do US European Command declarou que os porta-aviões de combate sob seu comando estariam menos tempo no Mediterrâneo e “durante metade do seu tempo desceriam para a costa oeste da África.”Um enfoque similar guia a restruturação das bases de ultramar, que em grande medida haviam permanecido intactas nos últimos anos. Quando a administração Bush chegou ao poder, a maioria das principais bases estavam na Europa Ocidental, no Japão ou na Coréia do Sul. Por insistência do então Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, o Pentágono começou a mobilizar forças da periferia da Europa e da Ásia para suas regiões centrais e do sul, especialmente a Europa Central e Oriental, o centro da Ásia e o sudeste asiático, assim como no norte e centro da África. É verdade que essas zonas são o lar da Al Qaeda e dos “estados-canalha” do Oriente Médio, mas também é verdade que aí está 80% ou mais das reservas mundiais de gás natural e petróleo, assim como reservas de urânio, cobre, cobalto e outros materiais industriais cruciais. E, como já foi dito antes, é impossível separar uma coisa da outra nos cálculos estratégicos norte-americanos.Outro ponto importante a considerar é o plano norte-americano para manter uma infra-estrutura básica com a finalidade de apoiar as operações de combate na bacia do Mar Cáspio e na Ásia Central. Os vínculos americanos com os estados desta região foram estabelecidos anos antes do 11-9 para proteger o fluxo do petróleo do Mar Cáspio para o Ocidente. Acreditando que a bacia do mar Cáspio seria uma nova e valiosa fonte de petróleo e gás natural, o presidente Clinton trabalhou aplicadamente para abrir as portas à participação norte-americana na produção energética da zona, e embora advertido dos antagonismos étnicos endêmicos da região, tentou reforçar a capacidade militar das potências aliadas do lugar e preparar uma possível intervenção das forças norte-americanas na zona. O presidente Bush redobrou estes esforços, aumentando o fluxo da ajuda militar norte-americana e estabelecendo bases militares nas repúblicas da Ásia Central.Uma mistura de prioridades governa os planos do Pentágono para reter uma constelação de bases “duradouras” no Iraque. Muitas destas instalações serão, sem dúvida, utilizadas para continuar dando apoio às operações contra as forças insurgentes, para atividades de inteligência militar e para o treinamento do exército e unidades policiais iraquianas. Mesmo se todas as tropas de combate norte-americanas fossem retiradas, de acordo com os planos anunciados pelos senadores Clinton e Obama, algumas destas bases seriam, com toda probabilidade, mantidas para atividades de treinamento, que tanto Clinton quanto Obama já afirmaram que irão continuar. Por outro lado, pelo menos algumas das bases estão especificamente dedicadas à proteção das exportações de petróleo iraquiano. Em 2007, por exemplo, a Marinha revelou que tinha construído uma instalação de direção e controle sobre e ao longo de um terminal de petróleo iraquiano no Golfo Pérsico, com a finalidade de supervisionar a proteção dos terminais de extração mais importantes da zona.Uma luta globalNenhuma outra das principais potências mundiais é capaz de igualar os Estados Unidos na hora de mobilizar sua capacidade militar na luta pela proteção das matérias-primas de vital importância. Contudo, as outras potências estão começando a desafiar seu domínio de várias maneiras. China e Rússia, em especial, estão proporcionando armas aos países em vias de desenvolvimento produtores de petróleo e gás e estão, também, começando a melhorar sua capacidade militar em zonas-chave de produção energética.A ofensiva chinesa para ganhar acesso às reservas estrangeiras é evidente na África, onde Pequim estabeleceu vínculos com os governos produtores de petróleo da Argélia, Angola, Chade, Guiné Equatorial, Nigéria e Sudão. A China também tem procurado acesso às abundantes reservas minerais africanas, perseguindo as reservas de cobre da Zâmbia e do Congo, de cromo no Zimbabue e um leque de diferentes minerais na África do Sul. Em cada caso os chineses têm conquistado o apoio destes países provedores com uma diplomacia ativa e constante, ofertas de planos de assistência para o desenvolvimento e empréstimos com juros baixos, chamativos projetos culturais e, em muitos casos, com armamento. A China é agora o maior provedor de equipamentos básicos de combate para muitos destes países, e é especialmente conhecida por vender armas para o Sudão, armas que têm sido utilizadas pelas forças governamentais em seus ataques contra as comunidades civis de Darfur. Além disso, assim como os EUA a China tem complementado suas transferências de armas com acordos de apoio militar, o que leva a uma presença constante de instrutores, conselheiros e técnicos chineses na zona, competindo com seus homólogos norte-americanos pela lealdade dos oficiais militares africanos.O mesmo processo está ocorrendo, em grande medida, na Ásia Central, onde China e Rússia cooperam, com o auspício da Shanghai Cooperation Organization (SCO), para proporcionar armamento e assistência técnica aos "istãos" da Ásia Central [Kazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguizistão], mais uma vez competindo com os EUA para conquistar a lealdade das elites militares locais. Nos anos 1990 a Rússia esteve preocupada demais com a Chechênia para prestar atenção a esta zona, e a China, por sua vez, estava concentrada em outras questões, que considerava prioritárias, ou seja que Washington contou com uma vantagem temporária. Contudo, nos últimos cinco anos Moscou e Pequim têm concentrado seus esforços em ganhar influência na região. O resultado de tudo isso é uma paisagem geopolítica muito mais competitiva, com Rússia e China, unidas através da SCO, ganhando terreno em sua ofensiva para minimizar a influência norte-americana na região.Uma amostra clara desta ofensiva foi o exercício militar realizado pela SCO no passado verão, o primeiro desta natureza, no qual participaram todos os estados membros. As manobras envolveram um total de 6.500 membros, procedentes do pessoal militar da China, Rússia, Kazaquistão, Quirguizistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, e ocorreram na Rússia e na China. Além do seu significado simbólico, o exercício era indicativo dos esforços chineses e russos para melhorar suas capacidades militares, dando forte ênfase a tudo o que tivesse relação com suas forças de assalto a longa distância. Pela primeira vez um contingente de tropas chinesas aerotransportadas foi mobilizado fora do território chinês, um sinal claro da crescente autoconfiança de Pequim.Para garantir que a mensagem destes exercícios não passasse desapercebida, os presidentes da China e da Rússia aproveitaram a ocasião para organizar uma cúpula da SCO no Quirguizistão e advertir os Estados Unidos (embora esse país não tenha sido mencionado) de que não permitiriam intromissões de nenhum tipo nos assuntos da Ásia Central. Em seu chamamento por um mundo "multipolar", por exemplo, Vladimir Putin declarou que “qualquer tentativa de resolver problemas mundiais e regionais de maneira unilateral será em vão.” Por sua vez, Hu Jintao fez notar que “as nações da SCO conhecem com clareza as ameaças que a região enfrenta e devem garantir sua proteção por si mesmas.”Estes e outros esforços da China e da Rússia, combinados com a escalada de ajuda militar norte-americana para alguns estados da região, são parte de uma maior, embora muitas vezes oculta, luta pelo controle do fluxo do petróleo e do gás natural da bacia do Mar Cáspio para os mercados da Europa e da Ásia. E esta luta, por sua vez, não é mais do que parte da luta mundial pelo controle da energia.O maior risco desta luta é que ela, algum dia, exceda os limites da competição econômica e diplomática e entre em cheio no terreno militar. Não acontecerá, é claro, porque algum dos estados envolvidos tome a decisão deliberada de provocar uma guerra contra um dos seus concorrentes, porque os líderes de todos estes países sabem com certeza que o preço da violência é alto demais considerando o que obteriam em troca. O problema é, em compensação, que todos eles estão tomando parte em ações que fazem com que o início de uma escalada involuntária seja cada dia mais plausível. Estas ações incluem, por exemplo, a mobilização de um número cada vez mais elevado de conselheiros e instrutores militares americanos, russos e chineses em zonas de instabilidade nas quais estes estrangeiros podem acabar, qualquer dia, apanhados em bandos opostos em conflito.O risco é ainda maior se considerarmos que a produção intensificada de petróleo, gás natural, urânio e minerais é, em si, uma fonte de instabilidade, que age como um imã para as entregas de armamento e a intervenção estrangeira. As nações envolvidas são quase todas pobres, portanto aquele que controlar os recursos vai controlar as únicas fontes seguras de abundante riqueza material. Esta situação é um convite para a monopolização do poder para que as elites cobiçosas utilizem seu controle sobre o exército e a polícia para eliminar seus rivais. O resultado de tudo isso é, quase sem exceção, a criação de um bando de capitalistas instalados firmemente no poder, os quais utilizam com brutalidade as forças de segurança e terminam rodeados por uma enorme massa de população desafeta e empobrecida, freqüentemente pertencente a um grupo étnico diferente, um caldo de cultivo idôneo para os distúrbios e a insurgência. Esta é, hoje em dia, a situação na zona do delta do Níger, na Nigéria, em Darfur e no sul do Sudão, nas zonas produtoras de urânio do Níger, no Zimbabue e na província de Cabinda, na Angola (onde está a maior parte do petróleo do país) e outras muitas zonas que sofrem o que tem sido denominado como “maldição dos recursos.”O perigo está, nem precisa dizer, em que as grandes potências acabem imersas nestes conflitos internos. Não estamos traçando um cenário extemporâneo: EUA, Rússia e China estão proporcionando armamento e serviços de apoio militar às facções de muitas das disputas antes mencionadas: os EUA estão armando as forças governamentais na Nigéria e de Angola, a China proporciona ajuda às forças governamentais no Sudão e no Zimbabue, e a mesma coisa ocorre com o resto dos conflitos. Uma situação inclusive mais perigosa é a que existe na Geórgia, onde os EUA dão respaldo ao governo pró-ocidental do presidente Mijail Saakashvili, com armamento e apoio militar, enquanto a Rússia apóia as regiões separatistas de Abkhazia e Ossétia do Sul. A Geórgia tem um importante papel estratégico para ambos os países, porque é lá que está o oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC), que tem o aval dos EUA e transporta petróleo do Mar Cáspio para os mercados ocidentais. Atualmente, há conselheiros e instrutores militares norte-americanos e russos em ambas as regiões, em alguns casos inclusive há contato visual entre uns e outros. Não é difícil, portanto, conjeturar um cenário no qual um choque entre as forças separatistas e a Geórgia leve, querendo ou não, a um enfrentamento entre soldados russos e americanos, dando lugar a uma crise muito maior.É essencial que os EUA consigam inverter o processo de militarização da sua dependência de energia importada e diminuam sua competição com a China e a Rússia pelo controle de recursos estrangeiros. Fazendo isso, seria possível canalizar o investimento para as energias alternativas, o que levaria a uma produção energética nacional mais efetiva (com uma redução de preços no longo prazo) e proporcionaria uma ótima oportunidade para reduzir a mudança climática.Qualquer estratégia focada em reduzir a dependência da energia importada, especialmente o petróleo, deve incluir um aumento do gasto em combustíveis alternativos, sobretudo fontes renováveis de energia (solar e eólica), a segunda geração de biocombustíveis (aqueles que são feitos a partir de vegetais não comestíveis), a gaseificação do carvão capturando as partículas de carbono no processo (de maneira que nenhuma dioxina de carbono escape para a atmosfera contribuindo com o aquecimento do planeta) e células de combustível hidrogênio, junto com um transporte público que inclua trens de alta velocidade e outros sistemas de transporte público avançados. A maior parte da ciência e da tecnologia para implementar estes avanços já está disponível, mas não as bases para tirá-los do laboratório ou da etapa de projeto piloto e promover seu desenvolvimento completo. O desafio é, então, o de reunir os milhares de bilhões —talvez trilhões— de dólares que serão necessários para isso.O principal obstáculo para esta tarefa hercúlea é que desde o início choca com o enorme gasto que representa a competição militar pelos recursos de ultramar. Pessoalmente, considero que o custo atual de impor a doutrina Carter está entre os 100 e os 150 bilhões de dólares, sem incluir a guerra do Iraque. Estender essa doutrina para a bacia do Mar Cáspio e a África vai acrescentar muitos outros bilhões a essa conta. Uma nova guerra fria com China, com sua correspondente corrida armamentista naval, exigirá trilhões em gastos adicionais militares nas próximas décadas. Uma loucura: o gasto não vai garantir o acesso a mais fontes de energia, nem fará baixar o preço da gasolina para os consumidores, nem vai desanimar a China na sua busca por novas fontes de energia. O que realmente vai fazer será consumir o dinheiro que precisamos para desenvolver fontes de energia alternativas com as quais conjurar os piores efeitos da mudança climática.Tudo isso nos leva à recomendação final: mais do que embarcar em uma competição militar com a China, o que deveríamos fazer é cooperar com Pequim no desenvolvimento de fontes de energia alternativas e sistemas de transporte mais eficazes. Os argumentos a favor da colaboração são esmagadores: estima-se que, juntos, os Estados Unidos e a China chegarão a consumir 35% das reservas mundiais de petróleo em 2025, e a maior parte dele terá que ser importado de estados disfuncionais. Se, como indicam amplamente as predições, as reservas mundiais de petróleo começarem a diminuir nessa época, nossos países estarão presos em uma perigosa luta por recursos cada vez mais limitados a zonas cronicamente instáveis do mundo. Os custos disso, em termos de gastos militares cada vez maiores e de uma inabilidade manifesta para investir em projetos sociais, econômicos e de meio ambiente que realmente valham a pena, serão inaceitáveis.Razão de sobra para renunciar a este tipo de competição e trabalhar juntos no desenvolvimento de alternativas ao petróleo, nos veículos eficientes e em outras inovações energéticas. Muitas universidades e corporações chinesas e norte-americanas já começaram a desenvolver projetos conjuntos desta natureza, ou seja, que não deveria ser difícil prever um regime de cooperação ainda maior.Na medida que em que vamos nos aproximando das eleições de 2008, abrem-se dois caminhos à nossa frente. Um nos leva a uma maior dependência dos combustíveis importados, a uma militarização crescente da nossa relação de dependência do petróleo estrangeiro e a uma luta prolongada com outras potências pelo controle das maiores reservas existentes de combustíveis fosseis. A outra, leva a uma dependência atenuada do petróleo como fonte principal dos nossos combustíveis, ao rápido desenvolvimento de alternativas energéticas, a um baixo perfil das forças norte-americanas no estrangeiro e à cooperação com a China no desenvolvimento de novas opções energéticas. Rara vez uma eleição política teve maior transcendência para o futuro do nosso país.


* Michael T. Klare é professor de Paz e Segurança mundial na Universidade de Hampshire. Seu último livro, “Rising Powers, Shrinking Planet: The New Geopolitics of Energy”, foi publicado por Metropolitan Books em abril.

O nascimento da Unasul e seus desafios


Roberto Romero
Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores

O acordo constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) prevê diálogo político, integração física e energética, defesa do meio ambiente, adoção de mecanismos financeiros sul-americanos, superação das assimetrias regionais e criação de uma aliança militar sem os EUA.
No longo caminho da América Latina em defesa da soberania e às vésperas dos 200 anos do grito de independência em toda a região, uma nova cúpula de presidentes quer assentar as bases da integração sem os Estados Unidos. Trata-se de um acontecimento histórico. Neste 23 de maio, os chefes de Estado de 12 nações assinaram, em Brasília, o Acordo Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), cujas bases estão sendo estabelecidas desde 2004 em instâncias da Venezuela, Uruguai, Argentina, Brasil, Bolívia e Equador, e que deixa para trás a inoperante Comunidade Sul-Americana de Nações. Suas áreas de atuação, definidas na Cúpula de Brasília de 30 de setembro de 2005, são o diálogo político, a integração física, o meio ambiente, a integração energética, os mecanismos financeiros sul-americanos, as assimetrias, a promoção da coesão social, a inclusão social, a justiça social e as telecomunicações. E uma aliança militar sem os EUA. A I Cúpula Energética Sul-Americana, na Ilha de Margarita, Venezuela, em 16 de abril de 2007 - chamada pelo presidente Chávez de "cúpula perfeita" devido às suas determinações concretas no caminho da integração - assentou as bases definitivas para a Unasul. O acordo adotado então foi o de caminhar para uma cúpula de chefes de Estado na qual seria assinado o tratado final, sendo determinado que a Colômbia seria o país anfitrião e que a reunião seria realizada em dezembro de 2007. Viria, então, o vai-não-vai do governo colombiano. Adiou o encontro de dezembro e, depois, outro marcado para janeiro. A situação tornou-se tão insustentável que o chanceler venezuelano, Nicolás Maduro, exigiu, em 19 de janeiro, "que fosse fixada imediatamente uma data para a Cúpula presidencial de países da América do Sul", acrescentando que o encontro deveria ter sido estabelecido há muitas semanas, "mas foi sendo adiado com desculpas". Maduro opinou que essa indefinição "está relacionada com as tentativas de que a Unasul não vingue. Estes projetos sempre têm obstáculos naqueles que não acreditam na união da América do Sul, porque continuam pensando que o futuro do continente é ser escravo dos interesses do poder norte-americano". O presidente Chávez foi ainda mais direto, afirmando que Uribe coloca obstáculos à reunião por ordem de Washington. Posteriormente, a chancelaria colombiana fixou o encontro para o dia 28 e 29 de março, em Cartagena. Mas a agressão contra o Equador turvou novamente o ambiente. O Brasil, então, mobilizou todas as suas relações para salvar a iniciativa, conseguindo um consenso para reunir os 12 presidentes da América do Sul neste 23 de maio. A América do Sul é uma região que apresenta um enorme potencial. Possui uma extensão de 17.6 milhões de quilômetros quadrados. A diversidade do seu território guarda ecossistemas diversos, como o Caribe, a Amazônia, a Cordilheira andina, o Pantanal, a Pampa, o Cerrado ou as regiões geladas do sul do continente. Sua população é de 377 milhões de habitantes e seu produto interno bruto de US$ 1,5 trilhão. Por outro lado, a região é fundamental para o futuro da humanidade, uma vez que possui abundantes recursos energéticos renováveis e não renováveis, grandes reservas minerais, significativos mananciais de água, um enorme potencial de produção de alimentos e riquíssima biodiversidade. Dispõe, além disso, de um importante e diversificado parque industrial, universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de excelência. Não há dúvida, então, que as potências, especialmente os EUA, querem estender seu domínio na região. OEA não fica à altura Por outro lado, não têm sido poucas as tentativas, no passado, de fortalecer a independência orgânica da América Latina. Mas a corda norte-americana sempre terminou se impondo e atando os destinos destes povos aos ditames da América do Norte. Por isso é difícil entender que não exista no continente uma organização que agrupe todos os países latino-americanos e, através dela, resolva seus problemas políticos, econômicos, sociais e de defesa, diametralmente opostos aos interesses de Washington. A Organização de Estados Americanos, OEA, não tem sido o fórum apropriado para que os povos do hemisfério possam dialogar e entender-se. Ali sempre tem primado um forte ruído, orquestrado por governos subordinados aos interesses dos EUA, que historicamente têm levado a OEA a ficar de costas para a realidade. Basta lembrar alguns casos proeminentes. Diante das agressões armadas dos EUA na República Dominicana, em 1963, e no Panamá, em 1989, a OEA escolheu o caminho da cumplicidade criminosa. A organização também abandonou a Argentina, quando esse país tentou retomar as Ilhas Malvinas, que estavam em mãos inglesas. Mais recentemente, foi incapaz de condenar a Colômbia pelo ataque ao Equador, como exigia o país agredido. O que fez com que viesse à tona, novamente, a necessidade de uma organização de estados latino-americanos. Integração militar sem os EUA Ponto crucial da cúpula de fundação da Unasul será, sem dúvida, a criação de um Conselho Sul-Americano de Defesa, no momento em que os Estados Unidos decidem restabelecer a IV frota militar nos mares da América Latina, a qual começará a operar plenamente em julho próximo. Essa frota nasceu em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, para reforçar a defesa do continente contra ataques de aviões e submarinos alemães e japoneses, mas foi dissolvida cinco anos depois de terminado o conflito. O ministro de Defesa do Brasil, Nelson Jobim, autor da iniciativa, que nas últimas semanas visitou todos os países sul-americanos para expor a proposta de integração militar, já antecipou que o presidente Lula da Silva vai submeter a proposta aos outros chefes de Estado da Unasul. O Conselho Sul-americano de Defesa, segundo é concebido pelo Brasil, não pressupõe uma aliança militar convencional, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), senão que é um fórum para promover o diálogo entre os Ministérios de Defesa da região. A proposta é criar um mecanismo de integração que permita discutir as realidades e necessidades de Defesa dos países sul-americanos; reduzir os conflitos e desconfianças e assentar as bases para a futura formulação de uma política comum de Defesa. Jobim, ao ser interrogado pelo secretário de Defesa norte-americano sobre o que poderiam fazer os EUA frente à criação do comando de defesa sul-americano, teria respondido: "manter-se à distância". O mecanismo, segundo o ministro, pode garantir a estabilidade em uma região cobiçada por suas importantes reservas de água, recursos energéticos e alimentos, além de "prevenir" situações como a crise provocada pela recente incursão de tropas da Colômbia em território equatoriano. As cautelas de UribeQuanto à receptividade da idéia, Jobim disse que tem recebido respostas entusiasmadas de países como a Venezuela, Equador e Chile, especialmente dos presidentes Hugo Chávez e Michele Bachelet, mas também dúvidas de outros. Indicou que o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, apesar de ter sido "muito cauteloso", "não rejeitou a proposta" e prometeu "estudá-la com atenção", e acrescentou que o país andino precisa levar em consideração que poderia ficar isolado. A presença de Uribe, que decidiu participar da iniciativa na última hora, talvez para não ignorar o conselho de Jobim, será muito incômoda, principalmente diante da criação deste mecanismo de defesa. Ele prefere manter-se na OEA e apoiar o Tratado Inter-Americano de Assistência Recíproca (TIAR), criado em 1947, fruto da guerra fria, ao qual o México renunciou em setembro de 2002, sem que outras nações seguissem o exemplo. Em uma entrevista publicada pelo jornal The Miami Herald, em 22 de setembro de 2002, assim que foi dada a conhecer a decisão mexicana, Uribe considerou necessário modernizar o TIAR, focando-o na luta contra o terrorismo e o narcotráfico, uma vez que, do seu ponto de vista, a maior ameaça para a região é, atualmente, a violenta oposição interna. Dois anos depois, em 19 de novembro de 2004, em Quito, durante a VI Conferência de Ministros de Defesa das Américas, que contou com a presença do secretário norte-americano Donald Rumsfeld, o mesmo que dirigiu a invasão do Iraque, Jorge Alberto Uribe, ministro de defesa da Colômbia, retomou a iniciativa do seu mentor, colhendo o maior isolamento já visto em um fórum dessa natureza. Os ministros evitaram que os EUA e a Colômbia impusessem o critério de transformar o continente em um bloco antiterrorista com a participação militar de todos os países. E teve ainda menos eco a proposta de Uribe de fazer uma lista de organizações terroristas da região que deviam ser combatidas com o esforço militar conjunto. O Brasil, e é preciso ver isso agora como um antecedente da sua atual iniciativa, disse naquela ocasião, através do seu vice-presidente, José Alencar, que "as Forças Armadas não podem mudar seu papel constitucional de defesa da soberania para dedicar-se ao combate contra o terrorismo nem aos delitos transnacionais como o narcotráfico". "É necessário manter o direito de cada Estado de identificar suas prioridades", destacou. O que fará Uribe diante desse quadro, considerando que ele acabou de expressar (21 de maio) que não descarta que a base militar norte-americana de Manta, no Equador, seja deslocada para a Colômbia, corroborando o que afirmou o embaixador dos EUA em Bogotá há poucas semanas, no mesmo sentido? Vai colocar sua assinatura em um tratado que descarta uma aliança militar com os EUA, que voltaram todos os seus olhos para o domínio na região através do Plano Colômbia, e com uma "ajuda" militar que passa, na última década, dos 6 bilhões de dólares? E o que vai fazer Uribe, como signatário do acordo, com os mil assessores e militares norte-americanos que passeiam como se estivessem em casa por bases e quartéis da Colômbia, sabendo que o eixo doutrinário exposto pelo Brasil, com o respaldo quase unânime das chancelarias da América do Sul, não é integrar as forças armadas dos dois países, mas convergir em uma estratégia de defesa regional comum, que tem como um de seus principais objetivos o de manter os militares dos EUA fora da região? Ele tomou o caminho do isolamento. Um dia antes de viajar para uma cúpula onde não teria qualquer papel, declarou que a Colômbia não faria parte do Conselho Sul-Americano de Defesa, nem iria assumir a Presidência desse bloco regional, como estava previsto. Contudo, ele não poria obstáculos à instalação de uma base militar norte-americana em seu território, se Washington precisar disso para "derrotar o narcotráfico". "A Colômbia tem dificuldades para participar", justificou. "A Colômbia, nas presentes circunstâncias, tem que deixar alguns pontos-de-vista claros e não é o momento para que a Colômbia participe dessa iniciativa de segurança", afirmou o mandatário. Prefere não ficar mal com Washington e continuar recebendo suas generosas dádivas. A Colômbia, o primeiro exército da região, por sua tropa e frota de helicópteros, com mais de 400 mil homens em armas e o maior orçamento de guerra do mundo, per capita, fará parte de um consenso que vai contra sua própria doutrina belicista, reafirmada após agredir a soberania de outro Estado, -o território equatoriano- com o argumento de "agir em defesa própria" e com o único respaldo de Washington, que salvou seu voto na OEA quando rejeitou a agressão? Não há dúvida de que a proposta brasileira, que tomou forma a partir da agressão colombiana ao Equador, aponta para o isolamento ainda maior de Uribe, sabendo que assim se aplica um golpe aos interesses norte-americanos na região. Sem deixar de lado que o Brasil, como principal provedor de aviões de guerra na América Latina, fortalece seu apetitoso mercado. Acaba de assinar um contrato para a venda de 24 Tucanos para o Equador e em breve acertará a venda de aeronaves de guerra para a Venezuela, rompendo o boicote de Washington. De qualquer modo, a iniciativa, de certa maneira, dá carne e osso à recente proposta de Chávez de formar um Conselho de Defesa e Forças Militares da Alternativa Bolivariana para os povos da Américan (ALBA), que só recebeu apoio da Nicarágua. Com a vantagem de que agora já não se trata do "iniludível" debate sobre o problema da defesa coletiva dos países da região, diante das mudanças estruturais que estão aparecendo, mas da expressão concreta de estabelecer, pela primeira vez na América Latina, um mecanismo de proteção capaz de dissuadir - e mesmo rechaçar - intervenções imperiais em assuntos soberanos da região.

Novo Nordeste, novas esperanças


23/05/2008 16:26:26


A descoberta de um novo Nordeste. A ressurreição da questão regional no Brasil. O crescimento econômico da região em ritmo maior do que a média brasileira. O aumento do consumo numa proporção bem maior do que no resto do País. A impressionante transformação política, com a autonomia da cidadania e o reflexo disso na eleição de governadores afinados com as teses reformistas e progressistas. Esses foram alguns dos temas que afloraram com intensidade no seminário O novo Nordeste e o Brasil, realizado em Teresina, no Piauí, nos dias 15, 16 e 17 deste mês de maio, promovido pela Fundação Perseu Abramo. Temas que animaram os participantes, abrindo perspectivas para o enfrentamento dos enormes desafios que a região enfrenta desde tempos imemoriais. Participaram do seminário, entre outros, o governador Wellington Dias; os ministros da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, e da Cultura, Gilberto Gil; o coordenador da bancada do Nordeste, deputado federal Zezéu Ribeiro, do PT, José Machado, diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (Ana), além do presidente e do vice-presidente da Fundação Perseu Abramo, Ricardo Azevedo e Nilmário Miranda, respectivamente. A economista Tânia Bacelar, que fez a conferência central do seminário – Um projeto para o Nordeste brasileiro – não deixou de ressaltar, no entanto, o quanto a região ainda se encontra distante dos níveis da média nacional, do Sudeste e do Sul quanto, por exemplo, à escolaridade. Enquanto a média nordestina da população ocupada com 10 anos e mais é de 6 anos de estudos, a nacional é de 7,6 anos, a do Sudeste de 8,5 anos e a do Sul de 8 anos. Além disso, se o olhar se volta para a relação entre a população e o valor do PIB, a discrepância também não é pequena. O Nordeste tem 28% da população e participa com apenas 13,1% do PIB. O Sul tem 14,5% da população e participa com 16,6% do PIB. O Sudeste tem 42,5% da população e contribui com 56,5% do PIB. Esses dados evidenciam que há, inegavelmente, ainda, uma questão regional a ser enfrentada e não entendida apenas como a questão nordestina. O Norte, por exemplo, enfrenta problemas semelhantes. Essa questão, no entanto, só voltou a ter alguma importância nos anos recentes, sob o governo Lula. Havia sido praticamente esquecida durante a gestão Fernando Henrique Cardoso e durante todos os anos 90. Antes de tratar do Nordeste, no entanto, Tânia Bacelar optou por fazer uma breve análise das macro-tendências mundiais. Na demografia, localiza uma diminuição do ritmo de envelhecimento e o crescimento da importância das cidades médias. Um novo padrão de uso dos recursos naturais e um novo olhar sobre o meio ambiente. O avanço da ciência e da tecnologia apontando para a convergência tecnológica. Avalia que os EUA devem manter a hegemonia nos próximos 20 anos, mas necessariamente o mundo será multipolar, com o avanço asiático. Em 2015, a pobreza terá se reduzido: será de 10% o percentual da população mundial que viverá com menos de US$ 1/dia. No Brasil, esse patamar será de 5%. Nesses próximos anos, o Brasil deve chegar à quarta ou quinta economia do mundo. E a globalização deve ser vista, na opinião dela, como um processo contraditório, onde cabem iniciativas regionais, onde têm valor as políticas específicas de cada país. Os territórios, ela diz, são palcos de uma constante tensão – os agentes globais os vêem como palco de operação e os agentes locais como uma construção social. São palcos de luta, portanto. Cenários de construção histórica. Para um lado ou para outro: tanto para a submissão diante do global, como para o desenvolvimento de políticas específicas, que caminhem em rumo contrário. O ambiente brasileiro e suas novas tendências foram também analisados. Estaríamos escapando, agora, da herança da estabilização submissa ao rentismo, decorrente das políticas dos anos 90. Estaríamos ingressando numa era de retomada de um crescimento sustentável. Há, inegavelmente, um novo e favorável ambiente macroeconômico e quaisquer dos índices indicam isso. Em dezembro de 2002, a inflação era de 12,53%. Em dezembro de 2007, de 4,46%. O juro real era, naquele 2002, de 15,6%. Em 2007, de 8,4%. O crescimento econômico anterior, de 1,93%. O de 2007, de 5,42%. O risco-país era de 1.529 pontos. Em 2007, de 212 pontos. A dívida externa com o FMI era de quase 21 bilhões de dólares. Em 2007, zero. Não é pouca coisa. O Brasil vive hoje sob um ambiente de mudanças. Viveu no século XX, por um período, um acentuado crescimento. Mas, sempre convivendo, também, com a concentração de renda. O Brasil do século XXI já aponta sinais de mudanças. Na demografia, com menor natalidade. Maior esperança de vida, mais dinamismo das cidades médias e com impressionante ocupação do interior. Na dinâmica da economia, com redução da concentração econômica no Sudeste e apresentando crescimento sem concentração de renda. Com isso, o quadro social vai indicando redução da pobreza e crescimento da chamada classe C, que passa de 34% para 46% da população, que significa um aumento de 23 milhões de pessoas, totalizando 86 milhões. E as classes D e E passam de 51% para 39%, segundo Instituto Ipsos, em pesquisa publicada por recente revista Exame. Uma mudança extremamente significativa. E o Nordeste? Bem, este cresce um pouco acima da média nacional desde meados dos anos 90, o que vai implicar na queda da emigração: entre 1986 e 1991, pouco mais de 869 mil pessoas saíram do Nordeste para outras regiões, enquanto que tal número desceu para aproximadamente 743 mil entre 1995 e 2000. Os nordestinos estão começando a ter a possibilidade de permanecer em sua região. O Nordeste ganha espaço com as mudanças na dinâmica da localização industrial – dito de outra maneira, com o avanço da industrialização na região. Em 1986, o emprego industrial correspondia a 10,7% do total, passando a 12,7% em 2005. Enquanto isso, São Paulo, que em 1986 detinha 45,5% do emprego industrial em relação ao total, passa a deter apenas 35,9% em 2005. Ao mesmo tempo, no entanto, e é importante acentuar isso, o Nordeste perde espaço na agropecuária. Em 1970, o valor bruto da produção agropecuária ultrapassava 18% e em 2005 decresceu para algo em torno de 14%. O Centro-Oeste ganhou espaço, passando, no mesmo período, de pouco mais de 7% para quase 21%. O Nordeste tem 45% da População Economicamente Ativa do campo e apenas 14% da produção, o que é grave, e indica o tamanho do desafio. Trata-se, para o Estado brasileiro, de melhorar a produtividade dessa parcela da população. Este, talvez, seja o maior problema nordestino. Outro fenômeno do desenvolvimento nordestino é o crescimento do terciário que no Nordeste passa de 25,7% da população ocupada em 1976 para 50,9% em 2006. É um indicativo da modernização da estrutura econômica, cada vez mais sustentada nos serviços. Simultaneamente, revela-se a difícil inserção da região no dinamismo exportador brasileiro. Só para se ter uma idéia dessa dificuldade, não custa lembrar que em 1960 a região participava com 20% do total das exportações brasileiras, caindo para apenas 8% em 2007. O porte da economia nordestina, no entanto, não fornece razões para pessimismo. Colômbia, Venezuela, Chile e Peru, por exemplo, têm, cada uma delas, economias menores do que a do Nordeste. A região vem enfrentando o desafio de reestruturar os complexos tradicionais, dando passos nessa direção em relação ao cacau e ao sucro-alcooleiro e não alimentando mais expectativas em relação ao algodão, que teve muita importância no passado. As bases dinâmicas do novo Nordeste seriam a fruticultura, a produção de grãos, o turismo, os pólos industriais de serviços modernos e o pólo de Carajás. O dinamismo desses setores, conjugado com as políticas públicas de assistência social do governo Lula, está permitindo a redução da pobreza na região. São 5,7 milhões de pessoas beneficiadas pelo Bolsa-Família no Nordeste, o que significa 51,8% das famílias em condições de extrema pobreza do País. O maior número de pobres do Brasil está no Nordeste. Em 2006, o aporte de recursos do programa no Nordeste foi de R$ 2,8 bilhões, que naturalmente tem um impacto econômico e de distribuição de renda extraordinário. O apoio à agricultura familiar é outro aspecto fundamental da política para a redução da pobreza na região. Não custa lembrar que em 2002, o governo Fernando Henrique Cardoso destinava R$ 2,2 bilhões aos agricultores familiares. Hoje, o investimento supera R$ 13 bilhões anuais. Se a isso se soma o aumento real contínuo do mínimo, pode-se ter uma idéia das possibilidades da redução da pobreza na região, com a consciência de que não será um processo rápido. O Nordeste representa 28% da população brasileira e tem metade dos trabalhadores que ganham salário mínimo. O Semi-Árido, que abriga 40% da população da região e apenas 20% do PIB regional, constitui um desafio especial para o projeto de um novo Nordeste. Houve o desmonte dos pilares de uma organização produtiva de 400 anos, especialmente do algodão e da pecuária bovina. Já ocorre, no entanto, a busca de novas atividades e de modernização de antigas. Ganham força a ovinocaprinocultura, o algodão colorido, flores tropicais, cajucultura orgânica, a produção de mel, a mamona e a farmacologia natural. Aqui, se o olhar se volta para o campo, coloca-se como aspecto essencial a política de assistência técnica e extensão rural, que é atribuição dos governos de Estado. Curioso, ao menos para os que olham o Nordeste como terra de pobres sem renda, é que o Brasil redescobriu a região recentemente pelo mercado. Entre 2003 e 2007, o Nordeste e o Norte lideraram o crescimento do consumo no País, evidenciando a existência de um mercado de massas nas duas regiões. Estados como Maranhão, Alagoas, Tocantins, Acre, Sergipe ou Bahia, entre vários outros, aparecem à frente de São Paulo, de Minas Gerais ou do Rio de Janeiro nos índices de consumo. Os pobres ganharam condições para consumir pelo conjunto das políticas adotadas pelo governo Lula e pelo modelo de desenvolvimento colocado em prática, onde necessariamente andam combinados o crescimento econômico e a distribuição de renda. Esse novo Nordeste, no entanto, a par da magnitude de sua economia, do início de um processo de redução da pobreza, de novos pólos dinâmicos na economia, apresenta uma acentuada fragilidade na área de ciência e tecnologia e as empresas da região são pouco inovadoras – estimativas indicam entre 4% e 7% as empresas com capacidade de inovar. Isso significa ser essencial o investimento na área de transmissão de conhecimento, embora, como ponto positivo, pode-se lembrar o fato de que a região tem ganhado novas universidades e campi sob o governo Lula para enfrentar a baixa participação nas matrículas do ensino superior. Há uma exigência de investimento em infra-estrutura, que começa a ser respondida com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O programa prevê um investimento global superior a R$ 80 bilhões na região. As investigações do subsolo e a produtividade agrícola em áreas modernas nos últimos anos indicam que o Nordeste deve transformar-se numa potência agro-mineral. Para que o desenvolvimento possa continuar beneficiando a população, será essencial o investimento em educação, em saúde, em saneamento, em transportes públicos de qualidade. Há passos em direção a esse novo Nordeste. As últimas eleições mostraram o rompimento das amarras da cidadania. A maioria dos governadores eleitos está vinculada ao pensamento progressista. Mas, apesar de todos esses avanços, o caminho certamente ainda é longo para superar a herança de séculos de marginalização do povo nordestino, sempre envolvidos em suas vidas secas, na falta de terra, de água, de trabalho decente. O que é novo para o povo é a esperança de que seja possível permanecer no Nordeste e realizar os sonhos na própria terra de origem.

domingo, 27 de abril de 2008

Debate Nacional

Biodiesel traz expectativa
de inclusão social no Norte e Nordeste

Criado com o objetivo de gerar emprego e renda entre os agricultores familiares, o programa de biodiesel mudou a rotina de parte dos trabalhadores rurais em algumas regiões. No Norte, com o plantio do dendê, e no Nordeste, com o cultivo da mamona, os agricultores já vislumbram dias melhores.

Maurício Thuswohl

RIO DE JANEIRO - O aumento da produção de biodiesel no Brasil oferece ao país a possibilidade de diminuir suas importações de diesel convencional, além de apresentar para todo o mundo uma alternativa energética ambientalmente sustentável à utilização dos combustíveis fósseis, que são extremamente poluentes e um dos principais causadores do aquecimento global. Mas, além de explorar esse potencial econômico e ecológico do novo combustível, o programa de biodiesel lançado pelo governo federal tem um objetivo social. Ele almeja inserir a agricultura familiar numa cadeia produtiva que permita melhorar a geração de emprego e renda no campo e a qualidade de vida dos agricultores familiares, que são responsáveis por 13% do PIB brasileiro.Lançado oficialmente em dezembro de 2004, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) é hoje um dos principais programas do governo federal para promover essa inclusão social no Brasil. Em 2005, foi aprovada pelo Congresso Nacional a lei que estabelece um cronograma de execução para o programa e também os percentuais mínimos obrigatórios de mistura de biodiesel ao diesel convencional. De acordo com essa lei, desde janeiro de 2008 a mistura de 2% de biodiesel ao óleo convencional, nomeada B2, é obrigatória em todo o país, o que representou a criação de um mercado estimado em cerca de 840 milhões de litros de biodiesel por ano. A previsão inicial do governo era que em 2013 o percentual de mistura chegasse a 5% (B5), mas o avanço da nova cadeia produtiva já fez com que essa meta fosse antecipada para 2010.Para garantir a inserção da agricultura familiar tradicional e também dos assentamentos da reforma agrária na cadeia produtiva do biodiesel, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) adotou algumas políticas de incentivo. A principal delas foi a criação do Selo Combustível Social, mecanismo que estimula as empresas produtoras de biodiesel a comprarem parte da matéria-prima necessária à produção do novo combustível diretamente dos agricultores familiares.As empresas que obtém o Selo Combustível Social conquistam o direito à redução de impostos como o PIS/Pasep e o Cofins. Em troca, se comprometem a comprar junto à agricultura familiar um percentual de suas matérias-primas, que varia de acordo com a região do país. No Nordeste e na região do Semi-Árido, o percentual mínimo de compra é de 50%. Nas regiões Sul e no Sudeste é de 30%, enquanto no Norte e no Centro-Oeste é de 10%. As compras são realizadas através de leilões promovidos pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), e a principal empresa compradora é a Petrobras.Para negociar suas vendas com as empresas produtoras de biodiesel, os trabalhadores rurais devem se fazer representar por suas associações, federações ou sindicatos. Essa foi uma exigência criada pelo MDA com o intuito de incentivar o cooperativismo na agricultura familiar brasileira. O objetivo do PNPB é fazer uma transferência progressiva de tecnologia, a fim de possibilitar que as cooperativas de trabalhadores reúnam condições em pouco tempo de agregar valor à sua produção. Assim, o agricultor familiar deixará de ser um mero plantador de matéria-prima para, por exemplo, se tornar apto entregar às empresas produtoras de biodiesel o óleo bruto já extraído.Outra medida de estímulo à participação dos agricultores familiares na cadeia do biodiesel é a possibilidade de acesso a um crédito complementar do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf) para garantir o custeio do cultivo das plantas oleaginosas necessárias para a produção do biodiesel. Mesmo que o agricultor já tenha obtido junto aos bancos algum crédito de custeio ou de investimento para seus cultivos alimentares, ele pode solicitar um segundo financiamento para a produção de culturas energéticas antes de concluir o pagamento do anterior. Essa política é também uma ferramenta para estimular a diversidade da agricultura familiar, já que o agricultor poderá continuar a plantar seu milho, seu feijão e suas hortaliças ao mesmo tempo em que cultivar as oleaginosas necessárias à produção de energia.Para definir qual tipo de cultura melhor se adapta a cada região do Brasil, o governo, através do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, realizou o zoneamento agrícola para a produção das oleaginosas em todo o país. Esse mapeamento permitiu a criação, até o fim de 2007, de 32 pólos de produção de biodiesel nas diversas regiões. Entre as principais espécies consideradas aptas a integrar a cadeia de produção, estão o dendê, a mamona, o girassol, a canola, o algodão e o amendoim, além da soja, que é hoje a principal oleaginosa cultivada no Brasil para atender à demanda do programa de biodiesel.Dendê no NorteNa Região Norte, a matéria-prima mais utilizada para a produção do biodiesel é a palma de dendê, que é considerada pelos técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a oleaginosa mais produtiva entre as disponíveis no país, e permite a extração de cinco toneladas de óleo bruto por ano. Além de seu componente social, com a possibilidade de considerável aumento de renda para o agricultor familiar nortista, a produção do dendê é incentivada pelo governo também como instrumento para inibir o desmatamento da Amazônia, já que, segundo o Código de Defesa Florestal, a palma pode ser plantada em áreas já degradadas.O maior produtor de óleo de palma no Brasil é o Grupo Agropalma, que pertence a Aloísio Farias, antigo dono do Banco Real. Localizada no Pará, entre os municípios de Tailândia e Moju (a cerca de 200 quilômetros de Belém), a área de plantio da empresa tem impressionantes 33 mil hectares. Ao aderir ao Selo Combustível Social, a Agropalma fez um contrato de compra com os agricultores familiares da região. Foram criadas no entorno da empresa três unidades de cultivo familiar, cada uma composta por 50 famílias, para o cultivo da palma. Somadas, as três unidades tem cerca de 1,7 mil hectares, e os agricultores têm da Agropalma o compromisso de compra de toda a produção por um período de 25 anos a partir do início do plantio.Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju, Manoel Libório dos Santos afirma que a chegada do PNPB foi um excelente negócio para o agricultor familiar da região: “Tínhamos uma preocupação inicial, pois o agricultor nativo estava acostumado a trabalhar com um tipo de cultura, sobretudo a mandioca, e precisava se habituar ao cultivo do dendê. Mas, o projeto está dando certo. Toda cultura tem seus riscos, mas podemos dizer que o dendê, que fica 25 anos produzindo, é muito mais compensador e uma maneira de o agricultor melhorar a própria vida. O agricultor tem acesso ao crédito, garantia de compra, a terra é dele, o dendê é dele”, diz.Com sua alta produtividade, e pelo fato de ser uma planta perene, a palma de dendê é a matéria-prima do biodiesel que melhor atende às expectativas de aumento de renda do agricultor familiar, possibilitando um ganho médio anual líquido de 15 mil reais. Como a palma só começa a produzir seus grãos após dois ou três anos de plantio, os trabalhadores que fizeram acordo com a Agropalma, além do crédito do Pronaf, passaram a receber um auxílio da empresa durante esse tempo de espera.Esse contrato já representa um aumento de renda para muitos agricultores. Raimundo Assunção de Souza, que planta palma de dendê há sete anos e há três ingressou no primeiro grupo de famílias que fez acordo com a Agropalma, se diz satisfeito com o projeto: “Eu achei um grande negócio. A gente, graças a Deus, se tranqüilizou muito mais no trabalho”, disse. Raimundo, que trabalha com seus filhos, possui 1.825 palmas de dendê plantadas, e espera, em breve, “conseguir comprar umas cabecinhas de vaca e produzir leite” com a renda adicional obtida com o dendê: “Já teve mês de colheita aqui em que ganhei até seis mil reais. Na mandioca, que é minha agricultura mesmo, eu não faço seis mil reais de jeito nenhum. Continuamos na nossa luta, mas o dendê veio para tranqüilizar”.Mamona no NordesteNo Nordeste, a melhor opção de cultivo de oleaginosa para a produção de biodiesel é a mamona. Apesar de não ser propícia à alimentação humana, a mamona pode ser plantada com culturas consorciadas como, por exemplo, o feijão, o que permite ao agricultor familiar nordestino continuar produzindo para sua subsistência ao mesmo tempo em que produz matéria-prima para a geração de energia.A conhecida resistência da mamona a torna uma boa opção para o agricultor familiar nordestino. Ela é a oleaginosa com menor capacidade produtiva, mas, em compensação, permite uma primeira colheita em 150 dias, o que promete um rápido retorno financeiro. A renda líquida anual da mamona, de cerca de mil reais, é baixa se comparada a outras oleaginosas, mas, segundo o MDA, representa um acréscimo médio de 35% na renda do agricultor familiar da região.À espera da mamona, que se encontra em estágio inicial de cultivo em larga escala para atender ao PNPB, a Petrobras está construindo nas proximidades da cidade de Quixadá, no belíssimo sertão do Ceará, uma unidade para produção de biodiesel. A construção da usina, por si só, trouxe um impacto econômico positivo para a região, já que gerou mil postos de trabalho. A obra tem conclusão prevista para o fim de 2008. Quando estiver operando em sua capacidade máxima, a nova unidade da Petrobras deverá processar 150 mil toneladas de biodiesel ao ano, fato que cria grande expectativa nos agricultores familiares que apostaram no cultivo da mamona.“Um hectare de mamona produz em média mil e duzentos, mil e cem quilos. Este ano, com toda a certeza, nós vamos alcançar esse objetivo”, afirma o agricultor Francisco Silva Rodrigues, que saúda a chegada da nova unidade da Petrobras em Quixadá: “Essa fábrica que está sendo construída aqui na região é um impulso muito grande para a agricultura familiar, inclusive para as famílias de assentados, para que tenha uma produção maior”, disse. Rodrigues diz torcer para que os agricultores familiares alcancem a meta, estimada no PNPB, de plantar cem mil hectares de mamona da região: “É uma tarefa grande, e muita gente ainda está desconfiada. Mas, as coisas estão evoluindo. Nós estamos começando, né?”, conclui.

ENTREVISTA

27/04/2008 - 06h 59
Nessa nova entrevista o presidente Lula demonstra responsabilidade com temas importantes pra o Brasil
e o povo brasileiro em contraste com os opositores que se revestem de má fé e deslealdade.


Entrevistadores: Josemar GimenezAlon FeuerwerkerDaniel PereiraBaptista Chagas de Almeida eSérgio Miguel BuarqueDo Correio Braziliense do Estado de Minas e do Diário de Pernambuco


Que medidas o governo vai adotar para evitar que o preço da comida encareça e corroa o apoio político que o senhor tem entre a população mais pobre?

É injustiça achar que o reconhecimento da população mais pobre se deve só à questão da comida. A comida é um fator preponderante. Agora, é importante ter noção do que foi feito para os setores excluídos da sociedade. Do Bolsa-Família ao Programa Luz para Todos, do Pronaf ao crédito consignado, do ProJovem às escolas técnicas. O que permite que você tenha uma densidade de política social como poucas vezes ou nenhuma vez o Brasil teve. Eu fui um dirigente sindical razoavelmente importante no Brasil, fiz as greves mais importantes, era muito difícil conseguir 1% de aumento real de salário. Hoje, 90% dos sindicatos estão fazendo acordos ganhando aumento de salário. Tem um conjunto de fatores que permite que a sociedade viva um pouco melhor. E um deles é a comida. Estamos vivendo um momento sui generis no mundo. Milhões de seres humanos começaram a comer nos últimos dez anos. E a agricultura não cresceu proporcionalmente à demanda. Por isso, eu disse que é um bom desafio. Porque ter mais gente comendo significa que a gente precisa produzir mais. Temos terra para produzir mais, temos tecnologia para produzir mais, temos sol para produzir mais, temos água para produzir mais. Produzir mais alimentos para manter o preço do alimento estável. Na semana passada, eu dizia para o ministro Guido Mantega que não é mais possível discutir inflação sem colocar na mesa o ministro da Agricultura e o ministro do Desenvolvimento Agrário. Porque tem que ter um jogo combinado. Precisamos aumentar nossa produção. Esse é um desafio que não me preocupa. É um desafio que me alenta a provocar os produtores brasileiros a produzirem muito mais.
Como o governo vai administrar dois projetos que parecem conflitantes, biocombustível e alimento? E como evitar que a cana de açúcar para o etanol reproduza o modelo concentrador de renda?

Primeiro, é inconcebível alguém dizer que a questão do biocombustível tem alguma coisa a ver com o preço dos alimentos, porque o mundo não produz biocombustível e tem 854 milhões de pessoas que vão dormir sem comer. Os que criticam o biocombustível nunca criticaram o preço do petróleo. O mundo desenvolvido importa petróleo sem tarifa e coloca uma tarifa absurda para importar o etanol do Brasil. No fundo, o Brasil está sendo vítima na medida em que virou artista principal do jogo. Não somos mais coadjuvantes. Somos o maior exportador de café, de suco de laranja, de soja, de carne. O que precisamos, e a na política do biodiesel está correto, é o chamado selo social. O produtor que contratar a produção do biodiesel da agricultura familiar tem isenção de impostos, exatamente para a gente não repetir o erro da cana. Temos dito claramente que, se quisermos ter sucesso (na rodada de Doha de liberalização do comércio), é preciso que os países ricos flexibilizem nos preços agrícolas para que os produtos dos países mais pobres entrem no mercado rico, senão não há estímulo para os países plantarem. Então, parem de hipocrisia e comecem a comprar os combustíveis que estamos vendendo. Ou façam parceria com terceiros países. A Europa poderia fazer convênio, como nós fizemos em Gana. Vamos produzir em Gana para vender para a Suécia. Quero dizer uma coisa de coração: se um dia eu chegar à conclusão de que, para encher o tanque de um carro, meu tanque (apontando para a barriga) terá de ficar vazio, vou encher meu tanque primeiro para depois encher o tanque do carro. Não podemos é aceitar a discussão que os países ricos querem nos impor. Desde pequeno eu ouvia dizer que o Brasil seria o celeiro do mundo. Pois bem, a oportunidade se apresenta agora. A Europa não tem mais condição de aumentar a produção agrícola, são poucos os países que têm terra para aumentar. Quem é que tem? O Brasil, a África e a América Latina.

O senhor tem dito que o biocombustível e a cana-de-açúcar não pressionam a produção de alimento porque o Brasil tem muita terra, especialmente pastos degradados que poderiam ser utilizados. Se está sobrando terra para plantar cana, por que está faltando para a reforma agrária?

Não está faltando terra para a reforma agrária. No governo passado, em oito anos, eles distribuíram 22 milhões de hectares de terra. Nós, em cinco anos, distribuímos 35 milhões de hectares de terra. Qual é a divergência que tenho com o movimento sem-terra? É que acho que o problema não é assentar mais gente. O problema é fazer as pessoas que já estão na terra se tornarem mais produtivas. O que não pode é ficar colocando gente num canto, e eles continuarem tão miseráveis quanto estavam ontem. Precisamos aperfeiçoar a produtividade, a assistência técnica, o equilíbrio dos preços para quem já tem terra. Desse drama eu não sofro. O dado concreto é que estamos vivendo um bom desafio, e o Brasil não pode ter medo do bom desafio. O ruim seria se o mundo estivesse precisando de alimento e o Brasil não tivesse terra, tecnologia e conhecimento.

Essa escalada no preço dos alimentos deu razão ao Banco Central, que aumentou em 0,5 ponto percentual a taxa básica de juros?

Olha, não me peça para discutir o Banco Central. Você pode discordar da visão que o Banco Central está tendo de que a inflação daqui a um ano será de 6% ou 7%, ou você pode concordar. Então, cabe ao governo, em vez de ficar choramingando, tomar atitudes para evitar que os preços da comida subam. Aquilo que são preços que dependem do governo as coisas estão mais ou menos controladas. Então, eu acho que não há necessidade de a gente ter medo da inflação. A inflação tem de ser controlada porque durante 27 anos da minha vida vivi de salário como trabalhador e sei que a inflação é uma desgraça na vida de um operário. Então, precisamos aumentar a produção. Uma economia saudável é aquela em que você tem um crescimento da demanda e um crescimento da oferta andando mais ou menos junto. Se a oferta cresce mais, você expande suas exportações. Na medida em que a demanda cresce um pouco mais e a oferta não cresce, temos um problema de aumento de preço. Não está acontecendo isso no Brasil. Não está acontecendo. Porque tem muitos investimentos. Esses investimentos num primeiro momento são consumo, porque você tem que comprar as coisas para construir uma fábrica, mas num segundo momento se tornam oferta. E é com essa idéia que nós trabalhamos para 2009. Os investimentos já estão feitos, já estão acontecendo. Nós passamos 26 anos sem fazer uma fábrica de cimento no Brasil. De repente, fomos obrigados a fazer dez fábricas de cimento, porque a construção civil foi destravada. E nós não queremos truncar o crescimento. Daí a minha preocupação com o aumento dos juros.

A ministra Dilma Rousseff tem a liderança política e a capacidade necessárias para enfrentar os desafios colocados ao país?

Por que você pergunta da Dilma e não do Franklin Martins? Eu tenho tido todo o cuidado e tenho consciência de que não é o momento de o presidente da República estar em campanha. Tenho dois anos e oito meses de mandato, tem muita coisa para se fazer neste país, e eu não posso perder tempo fazendo campanha. Tomei uma decisão de que nas eleições municipais, onde a base estiver com mais de um candidato, não pense que eu vou lá porque eu não vou. Agora, também não pensem... Outro dia não sei quem foi que achou absurdo eu dizer que queria fazer meu sucessor. Houve alguém que ficou estarrecido. Ele deveria ficar estarrecido se eu não quisesse fazer. Penso em fazer o sucessor à Presidência da República. Trabalho para isso. Agora, eu tenho uma base muito heterogênea. Com que o presidente precisa contar neste momento? Com a hipótese de que a gente consiga montar uma chapa única da base aliada.
Como fazer isso?

Nós temos candidato a presidente e a vice, 27 governadores e 54 senadores (nas eleições em 2010). Portanto, temos cargos para contemplar essa base heterogênea. O PSB, por exemplo, é um aliado histórico e tem candidato à Presidência, o deputado Ciro Gomes, um candidato forte porque já foi candidato duas vezes, é uma pessoa conhecida, basta ver nas pesquisas. Mas também é bem possível que outros partidos queiram lançar candidato. E vocês jamais me verão reclamar de um partido querer lançar candidato. Se o PCdoB quiser ter candidato, se o PDT quiser ter candidato, eu acho normal, porque é o momento de o partido colocar a cara na televisão, de dizer qual é o seu programa, a sua proposta. Então, vocês não me verão nervoso porque os partidos terão candidato próprio. Obviamente, se não for possível construir uma candidatura única da base, pode ficar certo de que o governo terá candidato.

Por que o senhor escolheu a ministra Dilma?

Eu não estou dizendo que será a Dilma. Não sei quem está dizendo que é a Dilma. É muito difícil a gente tentar lançar alguém candidato sem que tenha uma discussão com o partido ou com os aliados. Se você perguntar das qualidades da Dilma, vou dizer para você uma coisa: existem raríssimas pessoas no Brasil com a capacidade gerencial da companheira Dilma Rousseff. Rarísssimas. A Dilma é de uma capacidade de gerenciamento impecável. E, sobretudo, é aquilo que a gente gosta, caxias. Então, eu acho uma figura extraordinária. Agora, entre ser uma figura extraordinária para gerenciar e ser candidata à Presidência é uma outra conversa, porque aí entra um ingrediente chamado política, que exige outras credenciais. Eu não estou discutindo isso agora. No momento certo, provocarei a discussão.

Quando será esse momento?

Será depois das eleições de 2008. Terminada a eleição para as prefeituras, a partir do ano que vem todo mundo tem de saber claramente que vamos começar a campanha de 2010, sem que o presidente participe diretamente, porque tenho muita coisa para fazer, mas os partidos precisarão começar a sair a campo, porque senão fica uma situação desigual. O PSDB tem dois candidatos já postos, o Serra e o Aécio. Não se sabe se o Alckmin quer ser ou não. Ou seja, a oposição não pode ficar nadando na praia sozinha. É preciso colocar mais gente nessa praia, e acho que os partidos vão colocar.

O senhor é a favor da aliança do PT com o PSDB em Belo Horizonte?

Cada partido, na sua cidade e no seu estado, tem que determinar a política que ele entende que seja mais conveniente. O que estou entendendo? Que é conveniente para o Aécio fazer a aliança com o Pimentel e é conveniente para o Pimentel fazer a aliança com o Aécio. Como o Aécio tem o controle do PSDB e o Pimentel mostrou ter o controle do PT, os dois fizeram aliança. Eu acho normal para disputar a prefeitura. A gente não pode também ficar querendo que Roraima e Pernambuco se envolvam no acordo que Minas Gerais fez.
Os ministros Patrus Ananias e Luiz Dulci não ficaram muito felizes com a aliança.
É normal. Houve dezenas de reuniões, eles não participaram e a gente paga o preço. O Pimentel está há muito tempo na prefeitura, foi secretário do Patrus, foi secretário do Célio (de Castro), foi vice-prefeito, é prefeito duas vezes. Ele só pode ter o controle do partido lá. E também é muito competente. Se tem uma coisa que não falta ao Pimentel é competência.

Essa aliança não tem um significado maior, uma simbologia nacional?

Eu não vejo assim. Obviamente que quem fez pode pensar que tem.

A aliança não pode atrair o PSB em nível nacional?

Não acredito. Ela se deu em Belo Horizonte, mas não se deu em Contagem, em Ipatinga, em Governador Valadares. Ou seja, é uma coisa muito localizada.
Uma das versões sobre a aliança é que o PT está fortalecendo o Aécio porque acha que ele não será o candidato à Presidência do PSDB. Mas se ele for o candidato do PSDB, como é que fica?
Primeiro, não cabe ao PT fortalecer o Aécio. Quem tem que fortalecer o Aécio, em primeiro lugar, é o próprio Aécio e, em segundo lugar, o PSDB.

Mas o senhor disse que a aliança fortalece o Aécio e o Pimentel.

Não sei. Acho que essa aliança não pode ter vinculação com 2010. Todo mundo sabe que o Aécio é um político hábil, inteligente. O Aécio e o Pimentel gostam de viver essa relação muito harmônica. Isso é um problema de Minas Gerais. O jogo vai começar para 2010 a partir de agora. Obviamente, que o Aécio antes de qualquer coisa tem que enfrentar os obstáculos internos, o Serra tem que enfrentar os obstáculos internos. Depois é que eles vão sair na disputa pública para ver quem é quem. Acho que nós precisamos nos preparar. Quem quer que seja o candidato (da oposição), o governo vai ter candidato.

O governador Aécio Neves seria um bom nome da coalizão governista se mudasse para o PMDB?

É muito difícil para o presidente da República discutir em tese. É preciso primeiro saber se o PMDB quer. Segundo, saber qual é o tempo em que ele faria isso, porque isso aos olhos do povo não é uma coisa simples. Eu estou torcendo pelo Garantido e daqui a pouco o povo me vê no Caprichoso. Não é assim, não é uma coisa simples. Obviamente que o governador de Minas Gerais tem condições de pleitear ser candidato a presidente, como tem o governador de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Paraná. Agora, primeiro tem o confronto interno, que não é uma coisa fácil. E certamente o Aécio não vai correr do jogo antes de o jogo ser jogado. Ele vai ter que disputar. Se ele perde e depois tenta sair , aí realmente é um tiro pela culatra.

O senhor falou de Roraima. O senhor sempre diz que conhece o Brasil, e não de ouvir falar. Porque o senhor, ao longo de sua vida política, já esteve nos quatro cantos do país. Por que o senhor não foi até hoje, em mais de cinco anos de mandato, até Roraima para conhecer a situação pessoalmente e conversar diretamente com a população sobre o conflito fundiário que ocorre naquele estado?

Primeiro, eu já fui muitas vezes a Roraima. Não fui como presidente da República, porque tem um conflito estabelecido. Um grupo de políticos tratou de fazer contra o governo federal uma guerra, quando o que estávamos querendo fazer era a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol tal como preconizado no governo passado. O ministro Márcio Thomaz Bastos (então na Justiça) trabalhou, ouviu quem deveria ouvir, foi lá dezenas de vezes, fez uma demarcação, se estabeleceu o conflito, e é só você ver a publicidade feita pelos adversários lá que você vai perceber que está estabelecida uma guerra com o governo federal. E por que eu iria lá para aumentar esse conflito?

O senhor não acredita que pode ter o papel de mediador?

Temos tentando mediar daqui. Tudo que fizemos até agora foi acordado na minha mesa. Tudo. Acontece que você faz um acordo aqui e as coisas não acontecem lá. Agora, eu não quero mais discutir esse assunto porque está no Supremo Tribunal Federal. Eu só posso lhe garantir uma coisa: o Márcio Thomaz Bastos trabalhou nisso com carinho, tivemos deputados e senadores que foram lá, se construiu uma proposta que era razoável, se estabeleceu um acordo para distribuir as terras que estão nas mãos do Incra para o estado de Roraima. Tudo isso foi feito. Ainda assim continua uma guerra. É só você ver a quantidade de outdoors naquela cidade contra o governo federal, enquanto a gente queria encontrar uma solução para o bem de Roraima. Ora, não fui eu que levei os índios para lá. Eles estavam lá antes de chegar o governador, antes de eu ser presidente da República e, eu diria, antes de o Brasil ser descoberto. O que estamos fazendo é dando para eles aquilo que entendemos que é de direito deles. A suprema corte vai tomar a decisão. Qualquer que seja a decisão, para mim está resolvido o problema.

Como o senhor recebeu a fala do comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, a respeito desse assunto?

Ele disse publicamente que falou em caráter pessoal. Na medida em que o governo mostrou sua insatisfação, ele disse que não vai falar mais. Para mim, está resolvido o problema. Acho normal que um militar que está na área tenha uma visão que necessariamente não precisa ser a minha. Mas na medida em que o governo tem uma decisão aquela é a decisão do país. Agora, quando vai para a suprema corte, o governo também se subordina à decisão da suprema corte.

O senhor aceitaria prorrogar o mandato em mais um ano para viabilizar o fim da reeleição e o mandato presidencial de cinco anos?

Não existe possibilidade. O que eu acho é que o Congresso e os partidos deveriam priorizar a reforma política. Dentro da reforma política, poderiam aumentar o mandato do presidente em um ano e acabar com a reeleição a partir de 2014. O dado concreto é que a reforma política se faz extremamente necessária e eu não sei por que os partidos não querem fazê-la. Às vezes, sou cobrado e fico pensando se é o presidente que tem que fazer uma proposta. Não é o presidente.

Mas o senhor está disposto a apresentar uma proposta?

Eu não quero fazer. Não é papel do Executivo fazer a proposta de reforma política. Aliás, nós tentamos fazer. Tem uma proposta enviada pelo companheiro Márcio Thomaz Bastos ao Congresso que foi para uma comissão, foi discutida e parou. Se você perguntar para mim qual é a reforma mais importante a ser feita no Brasil, eu direi a reforma política. E tenho provocado os partidos, que discutam, que coloquem uma proposta, não façam nada para a próxima eleição. Façam para 2014, para quando quiserem, mas façam. Vamos dar mais estabilidade institucional ao país, valorizar os partidos.

Por que os partidos não votam a reforma?

Porque é sempre muito difícil as pessoas que estão exercendo o cargo quererem mudar as regras do jogo. Se o governo puxa uma proposta de reforma política e os partidos não querem, o governo já sai derrotado no berço. Eu tenho provocado eles. Já pensei até em convocar os ex-presidentes para que fizessem a proposta política. A impressão que eu tenho é que as pessoas não querem. É uma coisa bonita de falar, fácil de falar, mas na hora de votar ninguém quer. As pessoas acham que as eleições têm de ser do jeito que está.
Quando há interesse, é para propor o terceiro mandato.
O terceiro mandato não está ligado à reforma política. Propor o terceiro mandato é tão pernicioso quanto foi proporem o segundo.

Essa frase é perigosa, presidente, porque o segundo mandato aconteceu.

Aconteceu. Na minha opinião, não foi nenhuma sumidade para o Brasil porque a gente poderia ter mantido o mandato de cinco anos sem reeleição. Por que aconteceu o segundo? Por causa da vaidade de quem está no poder. Eu acho que é impensável, se você quiser consolidar a democracia no Brasil, pensar em terceiro mandato. Porque hoje você pensa em terceiro mandato, amanhã pensa em quarto mandato, daqui a pouco está pensando em quinto mandato. E isso é uma coisa obscena para a sustentabilidade da democracia no Brasil. As pessoas que discutem terceiro mandato não têm coisa mais séria para discutir. E a gente não pode dar crédito a tudo o que a oposição fala. A oposição que está com medo do terceiro mandato é a oposição que achava que meu mandato tinha acabado em 2005.

Há uma CPI mista no Congresso sobre cartões corporativos. A Polícia Federal está investigando uma possível manipulação irregular de informações sigilosas das contas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o vazamento desses dados, que estavam sob a guarda da Casa Civil. O senhor acha que esses dados estão seguros aqui no Palácio? O senhor falou tanto da capacidade gerencial da ministra Dilma. Não houve um descontrole nesse assunto?

A maior prova de que não estão seguros é que vazaram. Por que vocês não pegam o caso de que todo vazamento que houve dos cartões corporativos é por causa da divulgação feita pela Controladoria-Geral da União, no Portal da Transparência?
Mas ali não é vazamento.
Mas está tudo lá. Qualquer cidadão pode entrar no portal e pegar as informações. Obviamente que, se eu tirasse a minha camisa aqui e chamasse um de vocês escondido e falasse que essa camisa eu achei no túmulo do Che Guevara, a manchete seria: Lula entrega ao Correio a camisa com a qual foi enterrado Guevara. Até alguém provar que era mentira... Agora, achar que este governo iria fazer um dossiê contra a dona Ruth Cardoso, ex-primeira-dama, contra o Fernando Henrique Cardoso, é não ter dimensão de que, se eu quisesse fazer dossiê, teria feito em 2005, quando fui triturado por adversários que vocês conhecem. E que certamente, se investigados, teriam muitas coisas... Eu não fiz porque fui vítima disso a vida inteira. O que estamos fazendo é um banco de dados, para que as pessoas tenham as informações adequadas. E quando eu deixar a Presidência não existirá mais nada meu que não possa ser divulgado. Agora, se alguém consegue pegar um documento e vender como dossiê, ou entrega para um senador e para um deputado, eu não posso fazer outra coisa a não ser apurar, para saber o que aconteceu. Vamos continuar a fazer banco de dados até 31 de dezembro de 2010. Eu fico triste porque muitas vezes vejo o debate nacional se dar em cima de coisas menores, e não das coisas importantes que a gente deveria discutir. Eu posso ter todos os defeitos, mas se tem uma coisa que eu aprendi na minha vida é ter uma relação política leal. Eu vivi esse preconceito, essa perseguição, no movimento sindical. Minha vida foi futucada nos bancos quando sofri intervenção, e eu nunca mostrei um minuto de raiva ou de vingança de alguém. Se eu fosse fazer um dossiê, não seria da dona Ruth.

E se a Polícia Federal chegar à conclusão de que houve manipulação indevida de informações de acordo com as normas vigentes sobre dados sigilosos?

Se se provar que alguém manipulou equivocadamente, esse alguém terá de ser punido. Essa é a prática. A única coisa com que fico triste é alguém tentar passar a idéia de que o governo ia fazer um dossiê contra a dona Ruth. Realmente, não me cabe na cabeça.

O senhor concorda com o ministro da Justiça, Tarso Genro, para quem o governo tem o direito de recolher informações de gestões anteriores e usá-las para reagir a crises políticas?

Mas essas informações estão aí. Se eu quiser pegar o que fez um prefeito há 15 anos, é só ir ao Ministério do Planejamento, está lá o processo. Eu não disse que é certo. O Tarso disse que não é um delito. Certamente, o Correio Braziliense tem informações cotidianas dos seus concorrentes. Ou não tem? Ou a Pirelli não tem da Michelin? Ou a Volks não tem da Fiat? Agora, imaginar que você vai utilizar isso para fazer alguma coisa... Agora, quando nós instituímos a CPI... E é importante que isso não se perca de vista, porque de vez em quando a gente perde o momento histórico. Nós fizemos o primeiro comício das Diretas Já em novembro de 1983 no Pacaembu, quando o Fernando Henrique foi lá anunciar a morte do Teotônio Vilela, e para a opinião pública brasileira o único ato que houve foi o de 25 de janeiro de 1984. Mas o primeiro ato, com a presença até do Fernando Henrique, foi nosso. O que não quero é que se perca de vista que nós pedimos uma CPI e, como nós pedimos uma CPI para até dez anos atrás, temos que ter o banco de dados para oferecer para a CPI.

Esse debate sobre cartões corporativos é hipócrita?

Não diria que é hipócrita, diria que é pequeno. Eu era presidente do sindicato quando acabei com nota fiscal no sindicato, porque eu via a briga mesquinha do conselho fiscal para saber se o cara parou no posto ou no motel. Em São Paulo, se você pegar a Via Anhangüera, verá dois ou três restaurantes que são motéis também. Até você provar que tinha sido só almoço era uma guerra. Então, resolvi instituir a diária. Fiz uma média nacional. Se você quiser dormir na sarjeta, dorme. Não precisa prestar contas. Só assina o recibo de que recebeu a diária. Confesso a vocês que neste país há uma certa hipocrisia. Um ministro de estado, se for à França, come do bom e do melhor e não põe a mão no bolso. No Brasil, um ministro não pode pagar um café para um convidado. Imagina o ministro da Justiça do Brasil ir jantar com o ministro da Justiça da Colômbia e na hora de pedir a conta falar o seguinte: vamos rachar. É uma hipocrisia. Vou esperar a CPI terminar e instituir uma diária. Ou verba de representação. Espero que a CPI proponha isso. Se o cidadão pegar a diária e quiser dormir num meia estrela para economizar, o problema é dele. Mas pelo menos você fica tranqüilo e não fica vulnerável a ver manchete de jornal dizendo que o cidadão gastou oito reais com tapioca. Prefiro correr o risco de fazer a coisa séria.

O senhor acha que gastos de ex-presidentes têm de ser mantidos em sigilo?

Não é todo gasto que é mantido em sigilo, é aquilo que o Gabinete de Segurança Institucional entende que é de segurança da instituição Presidência da República. Só vale para quando você for presidente. Quando eu deixar a Presidência, no dia primeiro de janeiro de 2011, os meus dados serão dados públicos. Não tem mais segurança, não tem mais que alugar carro em meu nome, não tem importância as pessoas saberem em que açougue vai comprar carne. Eu conheço presidente que não toma água que a gente oferece, que não toma café que a gente oferece, que não come a mesma comida que a gente come. Eu como até coisa que me dão no palanque. Se tiver alguma desgraça, eu sei que vou me ferrar. A segurança quando vê toma da minha mão. Eu tenho de pegar sem eles verem. O ideal para mim ao terminar o mandato é ter clareza de que o Brasil mudou de patamar. Obviamente eu não carrego a ilusão de que a gente vai transformar o Brasil na grande nação com que todos nós sonhamos em oito anos, quinze anos. É um processo que tem de ter continuidade. Daí a necessidade de o próximo governante ter uma concepção seqüencial, de dar cumprimento às coisas que estamos fazendo.

As discussões que não avançam no Congresso, como a reforma política, têm uma mesma razão embrionária, que é a disputa entre dois núcleos de poder de São Paulo, o PT e o PSDB. Depois de 16 anos, está na hora de mudar esse eixo de poder?

Sempre achei que PT e PSDB pudessem ter muitas convergências e que as coisas não fossem ser radicalizadas da forma que ficaram radicalizadas. Quando o PSDB ganhou as eleições, houve uma tentativa de aproximação com a esquerda, havia até quem dissesse que o Fernando Henrique tinha cooptado o José Genoino, mas isso não aconteceu. Só para você ter uma idéia, eu fui chamado para conversar com o Fernando Henrique em 1998, depois das eleições. Não havia diálogo. E agora também não há, porque o PSDB virou o nosso principal adversário. É importante lembrar que, entre 1994 e 1998, o PT nas duas eleições disputou com o Mário Covas e depois teve a responsabilidade de contribuir para a eleição do Covas no segundo turno. Há dentro do PSDB e dentro do PT um espectro de conversações muito amplo. Radicalizou muito nos últimos três anos com algumas pessoas, não todas. A minha convivência com os governadores do PSDB é a melhor possível. Onde está o problema? No Senado.

Por que o governo, em vez de mandar derrubar a regulamentação da Emenda da Saúde, aprovada com o voto do PSDB, não negocia com a Câmara?

O governo não vai mover um dedo. Se eles quiserem negociar na Câmara, que façam. O dado concreto é que não pode a mesma Casa que derrotou a CPMF aprovar a regulamentação da Emenda 29. É um contra-senso. Para que fazem isso? Para me colocar em xeque? Se eu vou vetar? Não tenham dúvida. Não tenham dúvida de que eu não vacilarei um milímetro para fazer a coisa correta que tem de ser feita em nome deste país. A não ser que eu fosse um total irresponsável e deixasse passar. Aí, quando o outro tomar posse em 2011, o país está quebrado. Eu não vou fazer isso.

Isso vale para fator previdenciário também?

Isso vale para tudo que for aprovado e não tenha afinidade com o potencial de pagamento do país. Como é que eu posso chegar em casa e prometer para meu filho uma coisa que eu não posso dar? Fazer proselitismo em época de campanha? É realmente triste isso.

O senhor tem assistido ao noticiário da TV Brasil?

Eu não tenho conseguido ver televisão. Quando eu chego em casa, onze horas da noite, eu mal tomo meu banho, tomo uma sopa e vou dormir. Agora, mesmo sem ver, vou dizer uma coisa: vamos construir uma grande TV pública. Acho que é necessário. Não queremos fazer competição de publicidade com a imprensa privada mas queremos fazer competição na qualidade da informação, da programação. Alguns diziam que isso é TV do Lula, mas seria insano eu fazer uma coisa quando estou saindo do governo. Estou fazendo porque acho que o país precisa, porque a gente pode fazer melhor do que a melhor que nós temos no Brasil, que é a TV Cultura. Pode fazer melhor. E passar informações corretas, com jornalistas sérios, sempre mostrando a moeda com as suas duas faces, e nunca com uma face só. Eu sei que não é fácil. Para você lançar um canal de televisão e fazer ele ser visto, leva um tempo.

O senhor ainda tem aquela imagem de que a imprensa burguesa persegue o seu governo?

Houve um momento em que a imprensa brasileira criou a idéia do consenso único, favorável à primeira etapa do Plano Real. Foi um momento difícil em que você não tinha espaço para fazer oposição neste país. Era 100% pensamento único. Eu confesso a você que no meu governo teve 100% de pensamento contra.

Mas é passado?

Eu aprendi a não ficar com raiva da imprensa porque acredito na capacidade de discernimento do leitor, do ouvinte e do telespectador. A prova disso é a minha reeleição. Quando o cidadão é 100% contra, o leitor percebe. Quando ele é 100% a favor, o leitor também percebe.